A tradição da Deusa
Durante os últimos três milênios, as principais religiões do mundo cultuaram o Princípio Divino Masculino. Apesar das diferenças entre os conceitos, dogmas e práticas do judaísmo, islamismo e cristianismo, a Divindade Suprema é personificada por arquétipos masculinos, os mitos e a estrutura sendo enfaticamente patriarcais. Mesmo que existam figuras femininas honradas e celebradas, elas não são consideradas forças primordiais e criadoras, seus papéis e atribuições sendo secundários.
Apesar de, no momento, essas religiões prevalecerem no cenário mundial, a origem delas é relativamente recente. Há provas irrefutáveis de um antiquíssimo culto a uma Divindade Criadora chamada genericamente de “A Grande Mãe”, como comprovam milhares de estatuetas de figuras femininas datadas dos períodos paleolítico e neolítico (50.000 a 30.000 anos atrás).
Antes consideradas meras “vênus pré-históricas”, esses objetos de culto em pedra, argila, osso ou mármore são vistos atualmente como representações da Deusa Mãe, conforme comprovam os estudos, livros e pesquisas de cientistas mulheres (antropólogas, arqueólogas, sociólogas, historiadoras, escritoras).
A Grande Mãe representa a totalidade da criação e a dualidade vida/morte, pois sua essência é imanente e permanente em todos os seres e em todo o Universo. Seus múltiplos aspectos e manifestações representam e reproduzem o ciclo de nascimento, crescimento, florescimento, decadência, morte e renascimento da eterna dança espiral das vidas.
A Deusa Mãe foi a suprema divindade do planeta durante pelo menos trinta milênios, reverenciada por seu poder de gerar, criar, nutrir, proteger e sustentar todos os seres. Conhecida sob inúmeros nomes e representações de acordo com a cultura e a época, a Deusa era a própria Mãe Terra, a energia da vida e morte do planeta, venerada no ciclo das estações, nos fenômenos da Natureza, na riqueza e na beleza da terra, do céu, das estrelas, das montanhas, das águas, das plantas e dos animais.
Com o advento das idades de bronze e do ferro, as pacíficas civilizações matrifocais da Deusa entraram em declínio. Invasões sucessivas de tribos guerreiras e nômades trouxeram uma onda de violência e destruição. Uma nova civilização baseada em modelos de dominação e autoritarismo foi imposta, iniciando-se a perseguição da antiga religião da Deusa e de suas representantes – as mulheres. Os invasores trouxeram um panteão de deuses guerreiros, donos das tempestades, dos raios e das batalhas. O sexo da criadora foi mudado – a Mãe tornou-se Pai e a Deusa, transformada em consorte, filha, amante - depois finalmente ignorada e esquecida.
Seguiu-se a Idade da Razão e, com o surgimento do racionalismo e das correntes materialistas e dialéticas, a supremacia do espírito sobre a matéria passou a ser negada. Somente no século XIX o movimento romântico trouxe de volta valores femininos - no entanto, de uma forma idílica, idealizando somente as virtudes e a fragilidade da mulher. Infelizmente, o monoteísmo judaico-cristão, que proclamou um só criador – o Pai - e considerou a mulher a origem do pecado e de todos os males, suprimiu os símbolos do poder divino da Deusa, como sendo maléficos ou pecaminosos. Mesmo assim, as imagens, os atributos e nomes sagrados das tradições da Deusa (principalmente de Inanna, Cibele, Deméter e Isis) foram absorvidos e adaptados no culto de Maria. Com a extinção definitiva dos cultos da Deusa nos países cristianizados e a conseqüente perseguição e difamação dos valores sagrados femininos, somente fragmentos das antigas celebrações, tradições, práticas e conhecimentos velados permaneceram disfarçados nas crenças populares, nos costumes folclóricos, nos contos de fadas, nas terapias xamânicas.
No entanto, observa-se atualmente, no mundo todo, o ressurgimento dos valores e da busca do Sagrado Feminino, como uma necessidade de cura profunda da psique individual e coletiva fragmentada pela dicotomia da racionalidade. O movimento feminista encontrou nos arquétipos das Deusas modelos positivos de fortalecimento e auto-transfomação. A emergência da Deusa na consciência ocidental trouxe uma nova/antiga visão da Terra, favorecendo o surgimento da hipótese Gaia (da interdependência de todas as formas de vida no planeta ), das preocupações ecológicas, das terapias xamânicas, da renovação nas religiões fundamentalistas e tradicionais como o cristianismo e o judaísmo. Religiosos católicos como Matthew Fox estão aceitando uma nova visão de Deus como Mãe, a freira Meinrad Craighhead está pintando imagens de deusas vistas emsonhos e visões, as mulheres judias voltam a reverenciar Shekinah, a representação hebraica da divindade feminina.
Os movimentos neo-pagãos, como as várias vertentes da Wicca, as tradições xamânicas de várias origens, algumas Escolas de Mistérios e uma multiplicidade de seitas e organizações estão adotando a teologia dualista, reverenciando ambos os princípios - o Deus e a Deusa - e acrescentando uma fusão de antigas crenças folclóricas européias ou nativas, reminiscências dos antigos festivais agrários, arquétipos mitológicos e práticas mágicas e curativas, tradicionais ou recentes. Nesta amalgamação de crenças sobressaem-se o reconhecimento e a reverência à Deusa, com adaptações regionais ou pessoais.
Há também uma crescente divulgação da espiritualidade feminina na literatura, arte, música e terapia. O eco-feminismo ou o ativismo político e ecológico, o empenho para a transformação interior e a conseqüente necessidade da renovação individual e global são sinais evidentes e benéficos do retorno da Deusa. Sua volta não significa retomar as antigas práticas e crenças religiosas, mas revalidar o Sagrado Feminino, criar uma nova cosmologia centrada na Terra, curar as cisões individuais e coletivas, promover uma nova ética baseada em valores espirituais e a reverência pela vida, buscar soluções pacíficas para a nossa sobrevivência e convivência, realizando assim, em nós e ao nosso redor, o Casamento Sagrado: da luz e da sombra, do espírito com a matéria, do animus com a anima, do Céu com a Terra.
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