quarta-feira, 3 de setembro de 2014

ALMA CELTA LEGADO ESPIRITUAL

Alma Celta - Legado Espiritual


De certa forma, o druidismo é a soma dos conceitos religiosos, artísticos, intelectuais, sociais e científicos dos celtas antes da chegada do cristianismo.

- Jean Markale
Um dos mais prolíficos e influentes autores sobre a espiritualidade celta, o francês Jean Markale nos oferece, na frase acima, um bom panorama da riqueza que caracteriza a Alma Celta. Seu resgate jamais pode se limitar somente à tentativa de se reproduzir rituais ou mesmo compilar as crenças dos celtas da Antiguidade; muito mais do que isso, o resgate da Alma Celta implica em recuperar a visão espiritual e religiosa dos celtas; a inspiração artística e intelectual que eles despertam; e os valores sócio-culturais que regiam suas vidas. Com isso em mente, não podemos deixar passar desapercebida a palavra “soma” na frase de Jean Markale: por ser a soma desses conceitos, o druidismo não pode ser reduzido a somente um deles - qualquer que seja.
A informação é clara: o druidismo não é ‘apenas’ uma religião, tampouco é ‘apenas’ uma forma de ver, pensar e expressar o mundo, ou ‘somente’ um estilo de vida: é a soma de tudo isso. A mesma informação, por um outro prisma: a percepção do druidismo como somente uma senda espiritual é apenas uma forma de se deixar inspirar pela Alma Celta. É a partir dessa percepção mais completa e, portanto, mais próxima da espiritualidade celta original, que exploraremos a rica herança da Alma Celta em nossos dias.

 

Assim como a essência de religiões como o hinduismo, o judaísmo e o próprio cristianismo evoluíram ao longo dos séculos – muitas vezes assumindo múltiplas manifestações simultâneas -, também a Alma Celta vem se transformando com o passar do tempo, mantendo-se viva, ativa, válida e inspiradora. Pode-se dizer que o druidismo moderno é um reflexo atualizado das crenças e percepções dos druidas históricos de séculos atrás. Apesar de não possuir “escrituras” sagradas, o estudo das diversas fontes históricas sobre os celtas e suas crenças são subsídios suficientes para a recuperação dos valores éticos e espirituais do druidismo – claro, sempre adequados à nossa realidade.
É justamente essa ausência de escrituras, aliás, que permite ao druidismo adaptar-se aos tempos e mudanças sociais, mantendo-se sempre atual, válido e transformador. Nas palavras de Emma Restall Orr, “é evidente que as práticas do druidismo moderno são diferentes das do druidismo de dois mil anos atrás – afinal, se assim não fosse, essas práticas hoje seriam ilegais, imorais e, principalmente, ineficazes”.
Isto posto, veremos agora alguns elementos consensuais que formam o conjunto de crenças do druidismo da Antigüidade e que, de uma forma ou de outra, influenciam as modernas manifestações da espiritualidade celta.


O Divino

O conceito de um deus ou uma deusa único não encontra respaldo no druidismo histórico. Há tentativas modernas de se enxergar um monoteísmo nas crenças druídicas – notadamente nalgumas vertentes do moderno druidismo francês e no espiritismo kardecista; essas tentativas, contudo, esbarram nos registros históricos que dão conta de que os celtas prestavam culto a incontáveis (literalmente) deuses e deusas. Pelos mesmos motivos, também a afirmação - recorrente em meios neo-pagãos - de que “os celtas cultuavam a Grande Deusa” é equivocada e não encontra respaldo no estudo da espiritualidade celta histórica.
Portanto, é seguro afirmar que os celtas históricos eram politeístas, ou seja: criam em diversos deuses e deusas (ver Mitologia Celta na seção "Mitos & História"). Isto porque o conceito de deidade do ponto de vista celta é muito diferente da visão da moderna sociedade judaico-cristã: um deus ou uma deusa celta não são distantes, não moram nas nuvens ou num “Paraíso remoto”; nem são “onipresentes, oniscientes e onipotentes”. Os deuses e deusas celtas são as próprias forças da Natureza. Há mesmo alguns autores modernos que hesitam em utilizar os termos “deus” e “deusa” para se referir aos seres divinos do universo mitológico celta: e de fato, quando comparados a seus equivalentes noutras culturas, as deidades celtas são bem diferentes.
O resgate dessa percepção da esfera divina como algo imanente e presente em nossa própria realidade é uma preciosa contribuição para auxiliar no estabelecimento de uma nova relação entre a alma do mundo ocidental e a Natureza que nos cerca. Ao ver a paisagem imbuída com a presença divina, a Alma Celta resgata uma das mais marcantes caracaterísticas das espiritualidades nativas de todo o mundo: o Animismo.


Animismo

Para a Alma Celta, tudo que existe é dotado de alma. Obviamente não se trata do conceito de ‘alma’ como o espírito de alguém falecido, um fantsma, “encosto” ou “obsessor”. A alma presente em tudo que existe pode ser descrita como sua energia, a sua identidade intrínseca. Assim, cada característica da natureza – um rio, uma montanha, um lago, uma floresta, a chuva, os ventos, o trovão, as estações do ano – tudo isso possui, do ponto de vista celta, um espírito próprio, com o qual é possível estabelecer um diálogo, uma relação, um contato – de alma para alma. A esse princípio damos o nome de ANIMISMO: reconhecer a presença da alma (anima em latim) em tudo que existe. Se algo tem alma, é vivo; se é vivo, é sagrado. Se é sagrado, é divino. Se é divino, é dos deuses.
Numa cultura como a nossa, em que muitos hesitam em reconhecer a presença de alma em outros animais (por si só, uma contradição lingüística) e em que a principal religião moderna reconheceu somente no século XIX que mulheres tinham alma, absorver o conceito do animismo é um enorme desafio. Os benefícios de assim fazer, contudo, são muitos – num nível pessoal e coletivo.
A percepção animista da espiritualidade celta é facilmente identificada nos textos que relatam as crenças e práticas do druidismo histórico, e não deixa dúvidas sobre a natureza xamânica das práticas druídicas (ver abaixo).


A Alma: Uma Visão Celta

A percepção celta não atribui limites de espaço ou tempo à alma.
Não existe "prisão da alma". A alma é a luz divina que flui em você e em seu Outro.

- John O'Donohue

Um dos mais belos conceitos da espiritualidade celta é o que trata da natureza da alma: para os celtas, a alma de um indivíduo é a manifestação temporal de uma consciência maior e impessoal, que é o conjunto de todas as almas. Essa alma, segundo os druidas, é indestrutível, como o próprio espírito do universo. Ao descrever a profunda filosofia druídica a respeito da alma, os autores gregos demonstravam espanto em identificar num povo “bárbaro” ensinamentos comparáveis aos do grande filósofo Pitágoras.

É através desses textos clássicos que a doutrina druídica da alma é descrita como semelhante à metempsicosepitagórica – a crença de que a alma de um indivíduo pode ‘migrar’ para qualquer outra criatura no pós-morte. Isso foi confundido com a teoria da ‘reencarnação’, e equivocadamente muitos descrevem o druidismo como reencarnacionista. Os conceitos modernos da reencarnação implicam num constante processo evolutivo, que em teoria um dia se encerra. Num universo infinito, nada pode se encerrar, tudo deve se transformar e reciclar. Ademais, o conceito moderno de ‘evolução’ espiritual pressupõe uma “hierarquia”, em que uma espécie ou indivíduo é ‘superior’ a outro (sem o que não haveria ‘evolução’). Desse conceito equivocado surge o “especismo”, preconceito entre espécies, para o qual um determinado ser é mais evoluído do que outro. Este é um conceito tão danoso e equivocado quanto o racismo.
Afirmar que um ser é superior a outro é o mesmo que afirmar que uma raça é superior a outra – mais do que isso, é ignorar o fato de que, para o universo, um ser humano, uma bactéria e um átomo de hidrogênio têm todos a mesma importância na grande rede da existência.
Por outro lado, quando compreendemos que os celtas criam que a alma de um ser humano poderia renascer (diferente de reencarnar) noutra criatura, reforçamos a percepção de que tudo na paisagem é sagrado, dotado de vida – como vimos acima. Por fim, essa percepção nos põe em grau de igualdade e parentesco com todas as criaturas do mundo no qual vivemos – sejam elas a nossos olhos animadas ou não. E ‘animado’ significa “possuidor de alma”, de espírito, divino – como os rios das terras celtas, manifestações físicas de deusas.

 

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