Druidismo e Xamanismo: Elementos comuns
Querer separar o xamanismo do druidismo é desdenhar do xamanismo, como se este fosse mera bruxaria. Nas palavras de Mircea Eliade, o mais destacado estudioso da área, "o xamanismo é a mais valiosa experiência das religiões arcaicas" e suas práticas rituais originadas de crenças profundas
e pensamento metafísico geralmente possuem a mesma precisão e nobreza
das experiências dos grandes místicos do Oriente e do Ocidente."
- Jean Markale
e pensamento metafísico geralmente possuem a mesma precisão e nobreza
das experiências dos grandes místicos do Oriente e do Ocidente."
- Jean Markale
Em “O Xamanismo e as Técnicas Arcaicas do Êxtase”, obra seminal do historiador romeno Mircea Eliade, o autor afirma que “desde o início do século XX, os etnólogos se habituaram a utilizar como sinônimos os termos xamã, ‘medicine-man’, feiticeiro e mago para designar certos indivíduos dotados de prestígio mágico-religioso encontrados em todas as sociedades “primitivas”. Por extensão, aplica-se a mesma terminologia ao estudo da história religiosa dos povos “civilizados” e fala-se, por exemplo, em xamanismo indiano, iraniano, germânico, chinês e até babilônico para referir-se aos elementos ‘primitivos’ encontrados nas respectivas religiões.”
Assim, apesar de strictu sensu o termo “xamã” só ser correto quando designa um curandeiro/mago das tribos siberianas, atualmente essa palavra transcende os limites de sua origem e descreve as crenças encontradas em praticamente todas as espiritualidades do mundo. Ao estudar as práticas espirituais de diversos povos ‘primitivos’ ao redor do globo, Eliade identificou alguns pontos comuns que tornam possível descrever uma certa religião como xamânica: o animismo, já mencionado acima; o totemismo – a crença na existência de espíritos que, na forma de animais, orientam, protegem, ensinam e curam; a reverência aos ancestrais como guardiões e instrutores da tradição espiritual; o êxtase ritual como ponte de acesso ao Divino.
As lendas e mitos que nos chegam de diversas terras celtas atestam a existência desses elementos no cerne das práticas e crenças dos povos celtas – não só entre os druidas, mas também entre guerreiros, reis, poetas e representantes de outras camadas da sociedade celta, o que reforça a idéia de que esses conceitos eram comuns a todos – e não restritos a uma determinada categoria de indivíduos.
Alguns exemplos: além de rios vistos como entidades vivas e possuidoras de espíritos sagrados, também objetos como espadas, caldeirões, portões e casas surgem nas narrativas celtas como dotados de vida própria, caracterizando Animismo; diversas deidades e figuras míticas recebem nome (Cuchulainn, Badbh), proteção ou instrução (Fionn, Fintan, Macha) de animais, alguns chegando a assumir suas formas (Morríghan, Sadbh, São Patricio), caracterizando Totemismo; a reverência aos Ancestrais surge nas figuras do Falcão de Achill, em Fintan e muitos outros; e práticas como a misteriosa imbas forosnai dos druidas irlandeses, o furor de combate de Cuchulainn e a iluminação obtida por Fionn ao sugar seu próprio polegar implicam em estados alterados de consciência – ou êxtase ritual.
Para muitas pessoas, o termo ‘xamanismo’ evoca idéias de povos ‘primitivos’ e rituais bizarros. Um estudo mais aprofundado das crenças e técnicas xamânicas revela que elas são facilmente encontrados até mesmo nas religiões monoteístas institucionalizadas. Isso é importante para eliminar o preconceito nutrido pelo desconhecimento: afinal, preces, arrebatamentos, mantras e cânticos são formas de êxtase ritual tanto quanto os estados alterados de consciência produzidos pela ingestão de alguma substância psicotrópica nalgum culto dito ‘primitivo’.
Alguns estudiosos sugerem que os entrelaçados celtas surgiram como
representações de visões de transes místicos ou mesmo como
imagens capazes de induzir a estados meditativos, como os yantras indianos.
No universo da espiritualidade celta, os relatos que nos chegam pelas lendas e mitos descrevem diversas dessas práticas e crenças xamânicas com naturalidade, ou seja: os narradores e redatores das lendas aceitavam a realidade e, especialmente, a validade dessas técnicas. Ao estudar o xamanismo presente nas lendas celtas,Jean Markale afirma que, para o xamâ,
“O principal objetivo é retornar do Outro Mundo - daí a prudência dos xamãs que nunca se aventuram a sós nas regiões proibidas. No início eles são sempre acompanhados por um xamã mais experiente, que age não só como guia mas também como protetor. Somente os heróis predestinados e os xamãs experientes conseguem cruzar a ponte impunemente para em seguida retornar. As técnicas para a travessia são extremamente variadas: os sonhos são uma forma, o delírio outra, o orgasmo outra mais. (...) Tais conceitos são comuns no universo celta, assim como em outras culturas indo-européias. O furor divino, o "frenesi" de certos heróis gregos, o nome do proeminente deus-xamã Odin-Wotan, a fúria do complexo personagem irlandês Fergus (cujo nome se origina em ferg, "fúria, potência"), o calor interior de Cuchulainn - todos remetem ao mesmo tema.”
Trocando em miúdos, enquanto conjunto de técnicas e conceitos, o xamanismo consiste na obtenção de uma percepção diferenciada da realidade, um novo ponto de vista, que é obtido através do transe ou êxtase ritual, para que o praticante possa, munido dessa nova percepção, enxergar a realidade sutil por trás dos fatos, compreender nesse estado de arrebatamento a natureza da questão que motiva a ação xamânica e, em seguida, retornar com a resposta e/ou o curso de ação. A informar todo o processo, a essência xamânica é a crença na sacralidade da vida e da possibilidade de comunicação e real compreensão com o mundo sutil.
Para entender a importância do xamanismo em nossos dias, leia os artigos “A Resposta Xamânica”, de autoria de K. Lauren de Bôer, e Uma Espiritualidade para Salvar a Terra, de Cláudio Quintino Crow ambos na seção “ECO-ESPIRITUALIDADE”
Espaço Sagrado
A manifestação divina está em toda parte, nossos olhos é que não estão abertos para ela.
O maravilhamento é a força que nos impele adiante.- Joseph Campbell
Com isso em mente, podemos entender a real natureza dos deuses e deusas celtas: eles são os espíritos que habitam nosso mundo, dando-lhe forma e interagindo conosco. Um sinal inequívoco dessa visão está preservado até hoje na toponímia de diversos rios em terras celtas: o rio Shannon, na Irlanda, deve seu nome à deusa Sionann; na Escócia, o Clyde é a manifestação física da deusa Clótha; na Gália, a deusa Sequana é quem anima (animar = “dar alma”) o rio Sena – e assim por diante. Diversas montanhas, florestas, nascentes e lagos das paisagens celtas refletem a mesma crença de que a paisagem é povoada por poderosos espíritos da natureza – em outras palavras, deuses e deusas.
A Espiritualidade Celta nos lembra que não vivemos somente de nossos pensamentos, sentimentos ou relações.
Nós pertencemos à terra. Os ritmos da terra e suas estações vibra em nossos corações. O sol aquece a terra e propicia a vida.
A lua abençoa a noite. No mundo simplificado da Espiritualidade Celta, há uma percepção clara do sacramento da Natureza que gera a presença visível.
– John O’Donohue
Nós pertencemos à terra. Os ritmos da terra e suas estações vibra em nossos corações. O sol aquece a terra e propicia a vida.
A lua abençoa a noite. No mundo simplificado da Espiritualidade Celta, há uma percepção clara do sacramento da Natureza que gera a presença visível.
– John O’Donohue
Ruínas do Mosteiro de Clonmacnois, Irlanda:
Um dos primeiros mosteiros cristãos da Irlanda, Clonmacnois foi fundado por São Ciáran às margens do rio Shannon – prova de que os primeiros cristãos reconheciam a energia do local como sagrada. Afinal, para os celtas os rios são sagrados, pois deles depende a saúde de toda a comunidade das áreas vizinhas. O Rio Shannon recebe o nome da deusa celta Siónann - para os celtas, o rio era a própria deusa que os mantinha vivos.
Que diferença faria para nossos modernos rios urbanos se essa visão fosse restaurada...
Essa sacralização da paisagem é um dos principais atrativos que a Alma Celta oferece a nossos tempos: resgatar essa visão num nível mais amplo e coletivo seguramente criará uma nova consciência para as relações do ser humano com a natureza.
Impossível, do ponto de vista celta, observar a degradação do meio-ambiente sem sentir que um rio poluído é um ser divino que sofre e que morre, matando por conseqüência todas as criaturas que dele dependem – inclusive os humanos. Essa percepção enquadra-se com perfeição no conceito de uma “Espiritualidade Verde”, alinhada com a visão de uma nova sociedade proposta pelo geólogo Thomas Berry em seu projeto para a Sociedade Ecozóica.
Clique na seção "Eco-Espiritualidade" do menu acima e acesse as traduções por mim feitas de importantes textos sobre a Sociedade Ecozóica - esse pensamento revolucionário que fomenta o desenvolvimento de uma nova consciência de vida, seja no plano individual e coletivo, mental e espiritual, filosófico e das ações. Numa época em que o aquecimento global é uma ameaça real ao nosso futuro, é fundamental que desenvolvamos uma espiritualidade de vanguarda, ativa, transformadora.
O mundo não nos foi dado para com ele fazermos o que bem entendermos: não somos seus servos, nem tampouco seus guardiães. Ao contrário, nós somos parte desse mundo, dele dependemos e com ele interagimos constantemente. E essa interação deve ser honrosa, reconhecendo-se o espírito e a sacralidade da Paisagem.
Afinal, nossa interação com o mundo em que vivemos é justamente a força que forma e transforma esse mundo.
Templo onde estiver
Os celtas realizavam seus cultos em bosques, no mundo natural, atraídos pela silenciosa divindade dos locais silvestres. Certas nascentes, árvores, animais e aves lhes eram sagrados. Saber onde e o que um determinado povo cultua indica sua percepção da fonte da vida. O Deus cristão é acessado através das idéias, das palavras e dos rituais: os celtas não circundavam seus cultos com paredes. Estar em contato com a Natureza já bastava para pô-los em contato com a Presença Divina.
A natureza era o teatro das diversas dramaturgias da imaginação divina.
– John O’Donohue
O fato de os druidas históricos não construírem templos é explicado justamente por sua crença de que nenhuma estrutura erguida por mãos humanas é tão sagrada quanto a Natureza em que vivemos. Os druidas da Idade do Ferro celebravam seus rituais em bosques sagrados, chamados de “Nemetons”: essa palavra de origem gaulesa significa literalmente “bosque sagrado” (e hoje também designa grupos druídicos modernos que se reúnam regularmente para celebrar seus rituais). Uma das prováveis origens para o próprio termo druida aponta para o significado "aquele que tem a sabedoria do carvalho" - ou seja, aquele que conhece a magia do passar das estações do ano, metáforas para nossa vida.
O equivalente irlandês para o termo Nemeton é Fidnemed, ‘bosque sagrado’. A compreensão do real significado de se ganhar acesso ao sagrado a partir de um determinado local ganha mais força quando lembramos que a palavra para designar o “Céu”, no sentido de “morada divina, paraíso” é Nem – a mesma raiz linguística presente em Nemeton e Fidnemed. Para um druida, o local onde ele se põe em contato como sagrado é uma reprodução terrena do Outro Mundo – o mundo dos espíritos.
Bosque de teixos em Reenadinna Woods, Killarney, Irlanda
Todas as terras são, obviamente, sagradas, e parte de nosso trabalho hoje é recordarmo-nosda sacralidade da Terra – uma terra que foi dessacralizada.
- Philip Carr-Gomm, The Druid Way
Tempo Sagrado
Os registros de autores clássicos e também a etnografia das terras celtas constituem um rico manancial de informações acerca da natureza dos rituais celtas de outrora. Atualmente, a observação desses rituais é resgatada pelos modernos grupos druídicos e reconstrucionistas, mas sua sobrevivência também é encontrada em muitas práticas cristianizadas, notadamente na Irlanda.
Quando a Imaginação Celta ergueu seus olhos, ela buscava por significados e por padrões de existência. Ela percebeu, nos ritmos e padrões de estrelas, do sol e da lua, toda a ordem do universo.
- John O’Donohue
As datas sagradas dos celtas estão em sua origem associadas às estações do ano, cada qual contendo temáticas e mitos que promovem a compreensão dos ciclos da vida – nascimento, apogeu, declínio, morte e renascimento – em diversos níveis: nas estações do ano, na paisagem, no dia-a-dia, em nossos projetos, relacionamentos e na nossa vida como um todo. Compreender a fundo o simbolismo mágico dos festivais celtas requer estudo e vivência, mas é uma experiência transformadora, que traz um novo significado à vida de cada indivíduo e transforma sua visão do mundo - e do papel de cada um neste.
"Four Seasons", por Hillary Luetkemeyer
A sobrevivência dos festivais sagrados dos celtas pode ser atestada na literatura medieval, no folclore das terras celtas e nos achados arqueológicos. Essas fontes revelam quatro festivais principais: Samhain, Imbolc, Beltainee Lughnasadh, e sua ordem e simbolismo apontam para uma percepção não-linear do tempo, ou seja: dias, estações e anos se sucedem em perfeita e harmoniosa ciclicidade.
Quando compreendemos que não há inverno, por mais frio e tempestuoso que seja, que não traga a primavera; quando percebemos que não há noite, por mais escura e longa que seja, que não traga a aurora; então estamos prontos para entender que não há morte ou fim, por mais triste e doloroso que seja, que não traga um renascimento e um recomeço. Micro e macro em perfeita harmonia, a Vida como círculos concêntricos e interligados: um dia, um ano, uma vida, a eternidade; um indivíduo, uma coletividade, um ambiente, um Universo. A vivência dos festivais celtas através da chamada "Roda do Ano" nos traz de novo a magia de viver em integração com a paisagem que nos rodeia, e a compreensão da ciclicidade mostra, como bem sabem os que vivem em contato íntimo com os ritmos da Natureza, que há um tempo certo para tudo - reduzindo nossa ansiedade, ensinando-nos a aproveitar os fluxos da vida e a viver melhor celebrando a Vida.
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