quarta-feira, 3 de setembro de 2014

COSMOVISÃO


  

Cosmovisão: Um Olhar Celta sobre o Universo

Universo em Criação
No eterno vir a ser, que parece ser a concepção druídica do mundo, não se pode voltar atrás. Ao contrário, é necessário ir adiante, e a renovação e o rejuvenecimento estão à frente, e não atrás.
- Jean Markale
Uma das características mais marcantes dos mitos celtas é a ausência de cosmogênese – não há um relato da criação e início do universo: isto porque, em última análise, o universo não foi criado: ele vem sendo criado através das eras, pelas ações transformadoras do tempo, das intempéries e das criaturas – inclusive, nós. Esta visão nos devolve a responsabilidade pelos nossos atos, tanto individuais quanto coletivos. Joseph Campbell nos diz que "sua vida é o resultado de suas próprias ações. Não há ninguém a culpar, a não ser você mesmo", e é por isso que a Alma Celta hoje não se limita a ser somente uma filosofia ou uma religião, mas é também um modo de vida para o qual a preservação e restauração da natureza, os direitos dos outros animais, o consumo consciente de produtos e recursos e a vida ética são práticas fundamentais.
Micro x Macro: chave do pensamento celta
Em nossos tempos, a base da sociedade é o indivíduo: é comum ouvirmos que cada um deve ser respeitado em sua "individualidade" ou que temos de preservar os "direitos individuais"; produtos são vendidos em porções "individuais" e a competitividade artificalmente embutida no universo profissional faz com que todos pensem em si sem pensar no coletivo. Do trabalho para a coletividade e até para o seio da família é somente um passo curto, mas devastador para as relações pessoais.
Isso simplesmente não tinha espaço na Sociedade Celta. NO seio da tuath, a tribo, cada pessoa tinha a sua liberdade assegurada de acordo com sua condição pessoal, mas acima de tudo estavam os interesses comuns da tribo. O Corus Bescna, um texto legal produzido na Irlanda Medieval, afirma que "É um dos deveres da tribo oferecer apoio a cada membro da tribo, e isso a tribo faz quando nas condições ideais. Os deveres de um indivíduo para com sua tribo são: que aquilo que ele não comprou ele não venda; que ele não cause ferimento; nem deseje ferir ou trair". Ou seja, a tribo, como entidade-nase da sociedade, é responsável pelo bem estar de cada indivíduo dentro de suas possibilidades. Em contrapartida, as ações do indivíduo não podem desrespeitar os interesses da tribo como um todo.
Do ponto de vista celta, cada pessoa é uma parte vital de sua tribo, como um órgão de um organismo. A relação entre ambos é de interdependência: um não existe sem o outro e o desequilíbrio de um implica no desequilíbrio do outro. Da mesma forma, e até pela inter-relação de almas que o princípio anímico da Alma Celta propõe (ver "Animismo" acima), a relação do indivíduo com a sua comunidade amplia-se para a relação entre essa comunidade e a paisagem em que vivem. Essas relações são variações de um mesmo tema, em micro- e macro-níveis, como fica claro na compreensão pelos celtas irlandeses do simbolismo da Colina de Tara para a Alma da Irlanda. (link)
A ação individual é parte da ação global: pelo pensamento celta, estamos todos interligados - algo que, graças a teorias modernas como o Pensamento Sistêmico e a Física Quântica, somente agora a mentalidade ocidental parece capaz de compreender/recordar. Isso determina que quem se identifica com a espiritualidade celta deve ter consciência de seus atos, das causas e conseqüências, das origens das coisas e pensamentos, das interconexões. Em resumo: trata-se de um caminho de consciência e responsabilidade, que nos mostra qual o nosso papel dentro do Universo.
Parece pretensioso e distante da realidade, mas é mais simples do que se pode imaginar. Ao afirmar que “o objetivo da vida é fazer com que o pulso de seu coração entre em harmonia com o pulso do universo, alinhando a sua natureza individual com a Natureza”, o grande mitólogo norte-americano Joseph Campbell ecoou com precisão a essência da espiritualidade celta que, com sua profunda compreensão da Natureza, oferece a cada um de nós a chance de viver melhor a partir do re-entendimento da qualidade de nossa relação com o mundo.

O Universo Celta
Como praticamente todos os povos de origem indo-européia, os celtas viam o universo composto por três níveis de realidade: um mundo superior; este mundo intermediário; e um mundo inferior - todos interligados de forma harmônica, entrelaçados como num ‘knotwork’ celta. Uma vez que o druidismo é uma filosofia que preza o equilíbrio e não o conflito entre os extremos, não existem conceitos como bem ou mal absolutos: portanto, não existem “Paraíso” ou “Inferno”. O que existe é a percepção do ‘mundo médio’ – o universo fenomenológico em que vivemos – e o Outro Mundo, o mundo sutil, espiritual, divino.

'Terra dos Abençoados': Visões Celtas do Outro Mundo
Seja na forma de ilhas a oeste das terras celtas, seja na forma das ‘colinas ocas’ da paisagem britânica, o Outro Mundo Celta é sempre descrito como um local paradisíaco, habitado por deuses e deusas, heróis e heroínas, onde não há inverno nem tempestades e há fartura e alegria. O Outro Mundo é o reflexo da perfeição, e é dever do druida viajar ao Outro Mundo em busca dessa perfeição para aplicá-la neste mundo. Essa é a característica do druida como xamã, o ‘caminhante entre mundos’ que conhece a realidade do “Paraíso” e aplica-a em nossa realidade, promovendo a cura e a harmonia.
Quer dizer então que é possível viajar ao Outro Mundo em vida? Para a Alma Celta, sim. Os mitos e lendas celtas nos mostram que diversos heróis e heroínas fizeram a ‘perigosa travessia’ que os levou ao Outro Mundo transformando-os para sempre. Através das aventuras de Arthur e seus companheiros nas lendas galesas, bem como as Imramma ("viagens por mar") irlandesas, embarcamos em verdadeiras jornadas xamânicas para Avalon / Inis Afalach (a ‘Ilha das Macieiras’), ou Hy Brasil, a ‘Ilha dos Abençoados’.
O Vaso da Perfeição
Poucos conceitos são tão celtas em sua essência quanto "A Busca pelo Graal": seja na forma de um Cálice, como na mais conhecida literatura arthuriana medieval, seja como um Caldeirão no Outro Mundo nas lendas galesas originais, ou ainda na forma das fontes e nascentes irlandesas, o Graal é o Recipiente Mágico de onde jorra a Vida e a Inspiração. Alocado em terras sagradas no Outro Mundo - Avalon, Hy Brasil ou Annwn - o Cálice Sagrado ou o Caldeirão Inesgotável da Fartura é o recipiente que contém o néctar transformador e restaurador da Vida. Encontrar o Graal e dele beber é a metáfora perfeita para a filosofia celta.

'A Donzela do Graal' - Dante Rossetti
O Outro Mundo e Nossa Realidade
Na verdade, há momentos em que os mundos estão tão próximos que pareceque nossas coisas terrenas não passam de sombras das coisas do além.- WB Yeats, The Celtic Twilight
É consenso que o Outro Mundo celta está próximo a este, ou mesmo a este mesclado. Mas engana-se quem crê que isso facilita o contato com o Outro Mundo. Ao contrário, essa proximidade – maior do que se imagina – é justamente o que dificulta o acesso ao mundo espiritual: afinal, o Outro Mundo celta não está num ponto geográfico determinado. Como bem lembra John Carey, “existem múltiplos outros mundos irlandeses, localizados em lugares específicos, tanto no subterrâneo quanto em ilhas. O Outro Mundo é uma abstração moderna”. Se o Outro Mundo é uma abstração, não é a movimentação física que nos leva até ele: mais que um local geográfico, o Outro Mundo é um estado de espírito. Quem não entender esta realidade está condenado, qual Cavaleiro do Graal, a vagar em busca do inatingível objetivo.

Outro Mundo Celta: um mundo ideal
Nas terras paradisíacas do Outro Mundo celta não há fome nem inverno, e lá vivem guerreiros heróicos, poderosas damas e nobres reis. Pode-se dizer que o Outro Mundo Celta é um mundo ideal – e aqui esta palavra ganha mais de uma acepção: para além do sentido comum segundo o qual “ideal” é algo perfeito, o ‘mundo ideal’ do Outro Mundo celta evoca o universo das idéias – da sagrada criatividade do pensamento e da imaginação. Eis porque o conceito celta de Outro Mundo é difícil de ser compreendido: jamais será encontrado num local geográfico, porque é ideal. E é ideal porque o pensamento e a imaginação – a verdadeira Magia da alma humana – é incapaz de criar algo defeituoso ou incompleto. Em cada um de nós, nos níveis mais íntimos de nossas almas, a criação daquilo que é ideal gera perfeição. A força do mundo ideal está na inspiração que ele gera e nas emoções que ele desperta – as quais, por sua vez, traduzimos em nossas ações.
Eis porque a Alma Celta atribui tanta importância e poder à Arte: a criatividade do poeta, do escultor e do músico que, a partir da página em branco, do bloco de pedra ou das cordas estáticas do instrumento, produz vida e transforma o mundo. Por esse prisma, a Arte – plástica, literária, musical ou ritual - é a manifestação neste mundo do ideal e da perfeição que o artista vislumbra no outro mundo.
George Bernard Shaw, controverso mas genial dramaturgo e pensador irlandês, afirma que "A imaginação é o início da criação: você imagina o que quer, deseja o que imagina e, por fim, cria o que deseja." Aos estudiosos das artes mágicas, esta é uma fórmula perfeita, que explica como um indivíduo, ao trabalhar sua criatividade, desperta sua natureza, faz aflorar as forças criadoras, comunga com os deuses. Para a Alma Celta, a Inspiração é Sagrada - uma visão traduzida com poética precisão no conceito da Awen / Imbas.


Awen / Imbas: Inspiração Sagrada

Toda religião possui uma palavra-chave: para o budismo, a Iluminação; para o cristianismo, a Salvação, e assim por diante. Para a espiritualidade celta, essa palavra é Inspiração.
A palavra galesa Awen já foi traduzida como “espírito que flui” através de nós, ‘êxtase poético’, arrebatamento profético e até mesmo como “musa” – o espírito feminino que, entre os gregos, inspira as artes. A chave para a compreensão da real natureza da Awen é a palavra inspiração.
Inspirar é receber algo, introjetando-o. Tal como o ar que inspiramos e que enche nossos pulmões, a Awen nos toca, nos estimula, nos transforma. Similarmente, da mesma forma que temos de expelir o ar de nossos pulmões para continuarmos vivos, a Awen – a inspiração que recebemos – deve ser transformada em ação. De espírito para espírito, de alma para alma.
Awen, portanto, é o espírito que flui através de nós – é a ‘musa’ que inspira nossas ações e reações. Quando reconhecemos a presença do espírito em tudo (animismo), possibilitamos o contato profundo entre cada um de nós e “o outro” – seja o outro em questão uma pessoa, outro animal, uma paisagem, um nascer do sol, um lugar, um prato de alimento, nosso trabalho.

De Alma para Alma
O conceito irlandês do Anam Chara, “o amigo de alma”, é tipicamente celta e ilustra bem isso. Tal conceito ganhou visibilidade em nossos dias graças ao trabalho do inspirador filósofo e poeta irlandês John O’Donohue. Segundo seus textos, um Anam Chara é uma amizade no sentido mais profundo da palavra, em que duas almas se tocam não no nível intelecutal ou no físico apenas: a união ocorre no misterioso e transformador nível da alma. “Ao romper as barreiras da persona e do egoísmo e alcançado o nível da alma”, diz O’Donohue, “uma união de almas nesse nível não se quebra facilmente”.
Anam Chara é uma ligação de alma para alma, inspirada e inspiradora, entre duas pessoas. Mas o conceito fundamental dessa ligação de alma para alma pode ser extendido para qualquer tipo de relação: pessoa-pessoa, pessoa-outro animal, pessoa-objeto, pessoa-trabalho, pessoa-conceito, pessoa-paisagem. Quando ocorre esse contato, flui a inspiração.
O termo ‘awen’ vem do idioma galês – seu equivalente irlandês é a palavra Imbas, geralmente traduzida como“inspiração/conhecimento poético”. Em diversos relatos, Awen/Imbas é algo a que o druida/poeta tem acesso ao desempenhar procedimentos específicos. Awen/Imbas é um conceito abstrato: é como uma sinapse que nos une aos diversos aspectos do universo: é através dela que nos relacionamos, estabelecendo vínculos, pontes e interconexões com todos e cada um dos aspectos de nossas vidas, ressacralizando-a.

Quando conhecemos algo, entramos em relação com esse algo.– John O’Donohue

Seja no nível pessoal (psicologia) quanto no coletivo (sociologia), relacionar-se com “o outro” é uma das primeiras lições que um indivíduo deve aprender. Em nossos primeiros meses de vida, ainda não somos capazes de identificar a separação individual entre mãe e filho. O processo de individuação é fundamental para o desenvolvimento saudável da psique de cada um de nós. O mesmo processo ocorrerá mais tarde num outro nível, quando passamos a identificar o que é nosso e o que é dos outros – algo válido tanto para objetos quanto para idéias, conceitos e opiniões; é o processo formativo da identidade individual de cada um de nós. Ao resgatar a sacralidade das relações, a Alma Celta propõe uma melhor formação individual, bem como uma melhor compreensão de quem de fato somos – eis porque os celtas reverenciavam suas Ancestralidades.


Ancestralidades

Uma das principais fontes de inspiração para quem busca conhecer a Alma Celta é a sua própria História. As crenças dos celtas da Antigüidade, os feitos dos heróis e heroínas celtas e suas lendas e mitos maravilhosos nos inspiram a resgatar a Alma Celta para nossos dias, tornando-a uma espiritualidade ativa, coerente, embasada e transformadora. Este apreço pela história é um dos aspectos da Ancestralidade de um ponto de vista celta.
Plural
Todos nós estamos familiarizados com o conceito de ancestralidade significando “linhagem sangüínea”. Somos filhos de um pai e de uma mãe – nossos primeiros ancestrais – e também de avós, bisavós, trisavós e assim por diante, recuando até a aurora dos tempos e – assim nos explica a moderna genética - nos irmanando com praticamente todos os seres humanos. Essa ancestralidade sangüínea determina, através da transmissão de informações genéticas, quem somos fisicamente: a cor de nossos olhos, tez e cabelos, estatura e compleição física etc. No fundo, a todos esses nossos ancestrais de sangue devemos o simples fato de existirmos - sem eles, não estaríamos aqui - gostemos disso ou não.
Mas essa não é nossa única ancestralidade: outra, tão importante quanto a sangüínea, determina no que cremos, nossos valores, nossa filosofia – em outras palavras, determina a herança de nossa alma: é a Ancestralidade Espiritual.
Quando optamos por seguir um determinado caminho espiritual, seja ele qual for, ingressamos numa senda aberta por outros antes de nós. Para que possamos trilhar esse caminho com segurança, é necessário que conheçamos suas características, sua história, suas origens e transformações. Essa é a nossa Ancestralidade Espiritual. E ela não é limitada pela ancestralidade sangüínea, pois se assim fosse não haveria nenhum budista que não fosse indiano, nem cristão que não fosse de origem judia.
Conhecer a história da espiritualidade celta é honrar nossas origens, impedindo mistificações, falácias e fantasias. Da mesma forma que é possível traçar uma árvore genealógica que nos mostra quem são nossos ancestrais de sangue, é importante que possamos traçar uma ‘genealogia’ espiritual que nos ponha em contato com o sagrado e inesgotável manancial de inspiração que vem dos druidas históricos, passa pelos bardos e santos medievais e pelos modernos poetas, romancistas e filósofos irlandeses. Isso é honrar nossa história, nosso caminho, nós mesmos.


Honra

Poucas palavras são tão mal compreendidas como ‘honra’. Honra não é o mesmo que ‘orgulho’ – basta flexionar os verbos para compreender a diferença: orgulhar-se é pessoal, volta para si mesmo. Honrar é externo, é uma doação ao outro. Ou ainda: “Honro meu país” é bem diferente de “orgulho-me de meu país” – neste caso, honrar é ativo, orgulhar-se é passivo.
A honra é a chave da boa relação – seja entre pessoas, uma pessoa e seu trabalho, seu alimento, sua história. É o elemento que determina o bom fluxo da Imbas – da inspiração – numa dada relação.
Até por isso, para a Alma Celta a Honra torna a existência de escrituras supérflua. Em primeiro lugar, porque a espiritualidade celta era e ainda é uma tradição basicamente oral, ou seja: seus ensinamentos são transmitidos sem que se recorra a textos sagrados, ou a mandamentos recebidos do além, ou ainda a visões de um profeta. Os textos sagrados do druidismo são a paisagem em que vivemos: as mudanças do clima e a ciclicidade do tempo; os espíritos dos ancestrais e do local em que vivemos; o fluxo da inspiração que emana de cada criatura, de cada momento. É da compreensão desses ciclos e dessas interrelações que os druidas destilam sua compreensão do universo em que vivem e, assim, estabelecem os códigos de ética e de conduta que norteiam sua experiência. Era assim na Antiguidade celta, deve ser assim hoje e sempre.
Mas então por que não existem textos que normatizem esses ensinamentos dos antigos celtas? Porque isso seria matar aquilo que a Alma Celta tem de mais sagrado, de mais precioso: o incentivo ao desenvolvimento pessoal, individual. Qualquer texto, qualquer conjunto de mandamentos e regras pré-determinadas inibem, pelo simples fato de serem impostas, a individualidade. Afinal, nas palavras do grande Joseph Campbell, “O que cada um deve buscar jamais pode ser encontrado nalguma terra ou além mar. É algo que vem de sua própria potencialidade individual para experimentar, algo que jamais foi e jamais poderia ser experimentado por outra pessoa.” Ou como diz o ditado inglês, “o leite de um homem é o veneno de outro”, o que é correto para um não é necessariamente correto para os demais. A situação fica ainda mais complexa quando falamos de regras e conceitos escritos séculos, milênios atrás, quando os valores sociais, os costumes, as relações entre os seres humanos e entre estes e a paisagem em que vivem eram totalmente diferentes.
Bem X Mal?
Essa explanação já basta também para acabar com a percepção errônea de que ‘honra’ e ‘moral’ são sinônimos. A palavra ‘moral’ traz em seu bojo conotações como certo e errado, bom e mau, bem e mal. Esses conceitos dualistas simplesmente inexistem na espiritualidade celta.
A espiritualidade celta inspira-se e deriva da compreensão da natureza: não existe, na Natureza, bem ou mal. Portanto, a espiritualidade celta não reconhece esses princípios. E, ao não reconhecê-los, inviabiliza a redação – seja ela ditada pelos deuses, recebida por um profeta iluminado ou canalizada por um espírito – de códigos de conduta, de leis, de mandamentos.
O que nos traz ao ponto inicial deste raciocínio: como então viver uma vida ‘equilibrada’ sem ‘manuais de instrução’? A resposta mais objetiva é: vivendo a vida; inspirando-se nela e por ela; honrando-a. Afinal, a vida não é um aparelho previsível, lógico, mecânico para ter um ‘manual de instruções’: ela é viva e, por assim ser, não existem regras para todos a todos os momentos.
O objetivo da vida é fazer com que o pulso de seu coração entre em harmonia com o pulso do universo, encaixar a sua natureza com a Natureza.
- Joseph Campbell
Com equilíbrio, aliando o conhecimento à inspiração, a razão à emoção, a Alma Celta ensina cada um de nós a descobrir o seu caminho. Esse é um caminho de Honra.


Transformação

Nossa cultura moderna é pautada na funcionalidade – por conta disso, somos obcecados pela continuidade: se algo está funcionando, fazemos de tudo para que assim continue. Ao emprestar uma sensação de conforto advinda da familiaridade, a busca moderna pela continuidade empobrece nossa existência e nos faz temer a mudança. Esquecemo-nos de que o universo esteve, está e sempre estará em constante transformação; esquecemo-nos de que nossas vidas são feitas de constante mudança: manhã-tarde-noite, primavera-verão-outono-inverno, diástole-sístole, sono-vigília, vida-morte.



No druidismo a mudança é sagrada. Ela é tão integral à nossa tradição quanto aos ciclos da Natureza, às fases da lua, às marés,às estações do ano...
- Emma Restall Orr




Essa ligação com a natureza, característica tão xamânica da espiritualidade celta – e não esqueçamos que o xamanismo está na base de todas as religiões – é que faz do druidismo uma religião ‘pagã’. Pagão: palavra que vem do latim paganus, aquele que nasce no pagus, ou seja, no campo. Assim, em termos espirituais, ‘pagão’ se refere a uma espiritualidade do campo, da Natureza. É do contato com esses espíritos da Natureza que os druidas e druidesas modernos obtêm sua inspiração, canalizando-a, fazendo bom uso dela e, assim, honrando sua fonte, sua origem.

O druidismo não é somente uma tradição mágica, mas sim uma busca pela pureza da quintessência da vida. Pode-se passar eras e eras ponderando sobre teorias e crenças; pode-se crer ter encontrado alguma verdade superior, o que nos leva a derrapar no desejo de salvação e de poder. Porém, é na experiência da conexão, de espírito para espírito, que podemos saborear a verdadeira inspiração,
o verdadeiro leite da Mãe Natureza, o toque dos deuses.
- Emma Restall Orr

A ligação da Alma Celta com os ritmos e ciclos da Natureza é poderosa: mesmo em suas manifestações cristianizadas, a Alma Celta preserva essa ligação com a ciclicidade da Natureza, como atestam várias preces produzidas pelos primeiros cristãos irlandeses. No primeiro exemplo, a inconstância das marés, a fluidez do ar e o fulgor das estrelas são evocados como bênçãos:

Paz profunda das ondas que rolam a ti
Paz profunda do ar que flui a ti
Paz profunda da terra em repouso a ti.
Paz profunda das cintilantes estrelas a ti.
Paz profunda do Filho da Paz a ti.

Já no próximo exemplo, veremos como a alternância entre as estações – representada pelo sol e pelas chuvas – também são transformações valorizadas e benéficas:

Que a abençoada luz do sol brilhe sobre ti e aqueça teu coração até que ele se ilumine qual um grande fogo na lareira, para que o estranho nele encontre calor, tanto quanto o amigo.
(...)
E que as bênçãos da chuva recaiam sobre ti – a suave e doce chuva.
Que ela banhe teu espírito para que pequenas flores possam brotar espalhando sua doçura no ar.
(...)


As bênçãos e preces produzidos pelos monges irlandeses preservam em sua essência a lírica ligação que nos une à Natureza e seus ciclos sagrados, e são ecos diretos das celebrações sazonais dos celtas da Antiguidade.
A visão da sacralidade da natureza;
O Animismo;
A compreensão dos ciclos e ritmos do tempo;
A proximidade do Outro Mundo;
A busca de relações inspiradas em nossas vidas;
A compreensão de nossa ancestralidade e dos processos históricos que fazem de nós quem somos;
A importância atribuída à Honra e aos processos transformadores da vida:

Estes são apenas alguns dos muitos valores e conceitos originalmente celtas que, quando resgatados, podem nos trazer benefícios. Em conjunto, elas formam um verdadeiro circuito que, como sempre no pensamento celta, se entrelaçam e possibilitam uma compreensão mais profunda da Alma Celta.
Um exemplo: a percepção anímica resgata a sacralidade da paisagem, que traz a compreensão dos ciclos os quais, por sua vez, mostram a força e as bênçãos da transformação e nos ajudam a entender as relações que estabelecemos com os outros à nossa volta – a começar por nossos ancestrais, ponte direta com o mundo dos espíritos...
Ou então: ao honrarmos nossas origens, compreendemos de onde viemos e as transformações por que atravessamos em nossa aventura neste mundo, inspirando-nos com as relações que estabelecemos em nossa jornada para compreender melhor o mundo de nossa espiritualidade...
A partir da compreensão de que não há ordem, cronologia ou hierarquia no aprendizado da espiritualidade celta, as combinações dos elementos acima são infinitas – como infinito é o benefício que vem de sua compreensão.

Nenhum comentário:

Postar um comentário