OMITO DE PERSÉFONE
A prática da clínica psicoterápica é um espaço
sagrado onde se revelam os padrões psíquicos mais profundos, estruturantes da
alma humana. As diversas histórias que ali se derramam, com seus traumas e
transformações, representam uma amostra do que há de mais singular nos
indivíduos ao mesmo tempo em que apontam para os temas centrais da vida, os
quais sempre foram citados pela mitologia de todas as épocas.
Nos mitos os arquétipos se revelam em sua forma
mais pura. Em cada enredo elaborado pela consciência dos homens de milênios
atrás, com uma linguagem simbólica, típica do inconsciente, são contados os
caminhos para a evolução da alma humana, os passos heróicos imprescindíveis para
a iluminação da consciência, a trajetória do Ego na direção do Self. Cada mito
aborda aspectos diferentes de uma mesma jornada, a única que é essencial a
qualquer pessoa, o caminho de sua Individuação.
O mito de Perséfone apresenta o tema da filha
inocente raptada do mundo da mãe (Deméter) pelo deus dos subterrâneos (Hades).
Conta o mito que Perséfone debruçou-se para colher uma flor de Narciso à beira
de um precipício quando a terra se abriu e dela surgiu Hades, que a seqüestrou
para o mundo das trevas. Sua mãe a procurou por vários dias até que ameaçou
lançar a infertilidade sobre a terra se a filha não fosse encontrada. Com a
interferência de Zeus, Hades concorda em devolvê-la à mãe, mas antes lhe oferece
sementes de romã, que ela aceita, e por ter se alimentado naquele local ficaria
eternamente vinculada ao mesmo. Perséfone então passa a viver quatro meses com
Hades nos infernos e oito meses com a mãe no Olimpo.
Fazendo uma tradução para uma abordagem
contemporânea identificamos alguns temas trazidos por esta história e que podem
ser observados na prática clínica. A iniciação no mito dá-se com um rapto,
fazendo referência à forma como se inicia o contato com o inconsciente para quem
possui a consciência impregnada pela inocência. Há pessoas que permanecem por
longo tempo numa atitude fantasiosa com relação às questões decisivas da
maturidade e são despertadas de modo violento (crises de pânico, sintomas
físicos, perdas, acidentes) para uma reflexão mais profunda sobre o caminho que
tem percorrido até então. O rapto pode ser visto simbolicamente como uma lesão
infligida ao ego que precisa ser provocado para abdicar de seu controle
exclusivo sobre o psiquismo, estimulando-o ao reconhecimento do centro maior, o
Self.
A descida inicialmente traumática é, entretanto,
a chave para um vasto campo de descobertas interiores. O tema da descida ao
inconsciente, seguida da ascensão vai transformando a ingênua Perséfone na
grande “Senhora dos Infernos”, mas não sem antes sofrer os períodos de pavor
através do qual um psiquismo inocente é invadido pelo confronto com os conteúdos
assustadores que estiveram durante longo tempo reprimidos. A Perséfone imatura
geralmente aparece sob a roupagem da vítima, da mártir, da incompreendida. Só
depois, com o tempo e a maturidade conquistada pelo esforço na relação com o
inconsciente, poderá entender melhor suas manifestações psíquicas, deixar de
projetar no externo as raízes de seus males, e dirigir de maneira sábia a
relação com os conteúdos do mundo avernal, fazendo das manifestações
inconscientes, poderosos aliados.
É preciso realizar completamente a dolorosa
descida para ser capaz de subir e trazer para a superfície a sabedoria
adquirida. Após o período de sofrimento Perséfone é libertada e é agraciada com
o poder de circular tanto no Olimpo como no Hades, saber do céu e do inferno,
penetrar as raízes da dor e descobrir o caminho da própria cura. Abandonar o
lugar de inferioridade antes habitado e colocar-se como pessoa ativa na
construção do próprio destino é uma mudança que desafia o antigo padrão tão
cultivado pela Perséfone menina. Despedir-se dos aspectos infantis e assumir o
ônus da vida adulta, responsabilizando-se pela própria psiquê, assumindo seus
deuses e monstros interiores é tarefa heróica que transforma a vítima assustada
na Perséfone sábia.
A sabedoria é resultado da construção de um
mundo íntimo rico e fértil, que não é mais tratado como inimigo necessitado de
mecanismos repressores. Deixar-se conduzir pelas diretrizes do Self, aprender a
relacionar-se com o mundo subjetivo de si mesmo e estar conectado às próprias
profundezas é ser guiado pelo propósito superior da individuação. Até alcançar
este estágio de perfeita sintonia com o Self passamos, entretanto, por descidas
e subidas cíclicas, recheadas de sofrimentos e vitórias, como retrata o mito.
Nos ciclos de descida aos infernos nos conectamos inicialmente com os medos, a
depressão, os aspectos infantis, os conteúdos instintivos. Subimos à consciência
e vamos aprendendo a integrar tais aspectos na personalidade total. As descidas
seguintes já vão perdendo seu caráter traumático, permitindo assim o vislumbrar
da sabedoria resultante do mergulho nas próprias feridas, favorecendo então a
percepção dos componentes criativos e ordenadores do psiquismo. É preciso
resistir às dores iniciais para merecer penetrar os recantos mais transcendentes
do ser.
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