Tratava os serviçais com rédeas curtas. Erros graves eram punidos severamente. Ao seu lado, o inseparável Argos VIII, membro de uma seleta família que ao longo da história colaborou com a Rainha do Olimpo. Seus cem olhos, que se revezavam 24 horas por dia, de forma que nunca todos ficassem fechados ao mesmo tempo – evitando, desta feita, a fadiga coletiva dos globos oculares – ajudavam Hera na fiscalização e organização dos trabalhos. Todos os servos do Olimpo temiam e odiavam Argos, porque este era extremamente fiel à sua ama. Um dedo duro de primeira linha. Não pensava duas vezes em apontar um erro, por menor que fosse, e o responsável pelo equívoco para a rigorosa deusa. Às vezes, tinha-se a impressão que o escravo Argos VIII, na ânsia de demonstrar serviço, fazia questão de apontar o erro alheio na frente de Hera.
Antes fosse só isso. A falha de caráter de Argos VIII era o seu maior vício.
Os preparativos para a grande festança já estavam prontos. Hera, Argos VIII e todos os seres não divinos do Olimpo trabalharam arduamente para esta festa. Tudo, repita-se, tudo deveria estar pronto, em perfeita harmonia, para a chegada dos convidados. Erros não seriam tolerados.
Naquele dia, em que se comemorava a vitória triunfante de Zeus sobre Tifão, uma data considerada mais do que especial pelo soberano do Olimpo, nos momentos que antecediam a chegada dos convidados, Hera e Argos VIII passaram em vistoria o palácio pela décima e última vez. Enquanto ambos se incumbiam de avaliar o trabalho, a limpeza e a organização do ambiente preparado para aquela festa, seus subordinados estavam tensos. Qualquer falha poderia custar-lhes severas punições ou até mesmo a morte em casos extremos de desleixo. Argos VIII, com suas “visões acuradas” chegava ao disparate de analisar com seus inúmeros olhos da mão prato por prato, copo por copo, toalha por toalha. Queria se certificar que não haveria impurezas na comida dos convidados. Seus olhos situados nos membros inferiores verificavam se o chão estava branquinho, sem poeira ou qualquer outro tipo de resíduo. Hera, de sua banda, passava em vistoria pelos demais aposentos e jardins. Observava a harmonia da decoração. Sempre tinha dúvidas. Será que a cortina dourada combinaria com o tapete vermelho cor de sangue? Será que a estatua de Tifão derrotado estaria muito grande em relação à de Zeus? Os puffs estariam de acordo com a preferência dos convidados? A Ambrósia deveria ser colocada em vasos grandes ou pequenos? Iguais ou diferentes? A piscina estaria na temperatura ideal? O lugar destinado a Afrodite, atrás de todos os outros deuses, na parte menos iluminada do templo, ao lado de seu repugnante marido, Hefesto, longe da mesa de alimentação, da piscina e de onde ela e seu marido, Zeus, ficariam na maior parte da festa, era realmente o pior que poderia arranjar? Será que Zeus perceberia se Afrodite ficasse com um puff fora do templo?
Enquanto Hera estava imersa nestas indagações de alta relevância, Argos VIII, no ambiente ao lado, fiscalizava a limpeza das colunas. Repentinamente, a criatura, sem motivo aparente e sem que ninguém percebesse, manchou uma pilastra.
Ao lado da pilastra estava uma bela serviçal, uma humana alçada ao Olimpo com promessas de riquezas e de vida fácil, mas que acabou sob os desígnios da severa deusa do casamento e da fidelidade conjugal, como tantas outras. Foi vítima do tráfico de mulheres terreno e acabou no Olimpo. A moça em questão era a responsável pela limpeza das colunas do templo de Zeus.
Argos, maliciosamente, apontou para ela a sujeira. A moça entrou em desespero. Por muito menos vira Hera enlouquecer outras domésticas que também falharam em seu mister. Emitiu um leve grito, que logo foi abafado pela mão asquerosa e cheia de olhos de Argos. Silêncio! Por sorte de ambos, Hera não ouviu. A deusa, em outro aposento, estava com a cabeça fervilhando em razão da aproximação da chegada dos convidados.
Argos VIII, ainda com as mãos sobre a boca da moça, perguntou, aos sussurros:
– Você sabe o que eu quero, não sabe? – e apalpou o farto seio da garota.
A mulher respondeu afirmativamente com o movimento de sua cabeça. As moças que estavam do lado se seguravam para não chorar. Ele sempre fazia isso. O dia delas também chegaria.
– Hera suprema! – proclamou repentinamente Argos VIII, indo em direção da deusa no outro aposento.
– Sim, Argos. Algum problema? – respondeu.
Todos os serviçais tremeram. Estavam com medo, angustiados, desprotegidos, à mercê de uma criatura torpe, podre, interesseira e rasteira. O que ele faria?
– Vistoriei o templo milímetro por milímetro e não há qualquer imperfeição para ser corrigida.
– Ótimo! O senhor está dispensado. Recolha-se. Não quero que meus convidados vejam você. Leve as empregadas também. Não suporto gentalha! – disse Hera que nunca aparecia na sua forma física para os mortais, a não ser na hora de puni-los ou matá-los. Em regra, apenas seus olhos, ampliados, apareciam diante dos mortais e de criaturas não divinas.
Argos VIII se retirou, voltou ao ambiente em que estava, limpou a mancha que tinha feito na coluna, pegou seu prêmio pelas mãos, determinou que as empregadas voltassem a seus aposentos e retirou-se.
Finalmente chegou a hora da comemoração. Os convidados não tardariam a chegar. Hera se posicionou, fogosa e soberana, no trono situado na antessala do templo de Zeus, próprio para receber os convidados. Outrora havia dois tronos, mas como ela sempre ficava responsável pela recepção e como Zeus nos últimos anos vivia mais fora de casa do que em seu palácio, mandou arrancar o outro trono e jogá-lo fora, de raiva mesmo. Pelo menos não teria que explicar, na chegada de cada convidado, a ausência de seu marido, pois com apenas um trono na entrada, quem não seria impelido a perguntar sobre o trono vazio e sobre Zeus? Sim, dar um fim no trono do marido fora uma das melhores atitudes que havia feito na vida. E o melhor de tudo, é que ele fingiu que não notou a ausência de seu assento. Certamente ficou com medo de entrar em mais uma discussão doméstica sem fim com sua querida esposa.
As ninfas especialmente designadas para servir os convidados já estavam a postos. Eram belas e imortais. Hera tinha vontade de fulminá-las, porque padecia do mal do ciúme e porque conhecia o marido que tinha, mas elas tinham a função de entreter alguns convidados carentes ou promíscuos. Além disso, desde que não se oferecessem para seu esposo e se mantivessem longe dele, não haveria problema.
Hermes, como sempre, foi o primeiro a chegar.
– Hermes, querido! Pontual como sempre. – festejou a deusa solitária, beijando a face do forasteiro. – Há quanto tempo não nos vemos! – exclamou – E sua mãe como está? – perguntou sincera.
– Hera, doce rainha do Olimpo, Maia, minha mãe, manda lembranças. – respondeu Hermes, sempre muito educado, principalmente com Hera, pois conhecia seu temperamento difícil. Seu raciocínio rápido o impedia de levantar indiscrições desnecessárias, como a de lembrar a Hera que se viram há poucos dias e que, nos últimos dez mil anos, a convivência era praticamente diária. Hermes era alto e magro, moreno claro e possuía o corpo atlético, porque corria muito. Não era bonito, nem feio. Usava suas inseparáveis sandálias aladas. Seus cabelos castanhos eram volumosos, mas não davam a impressão de que fosse um desleixado, como outros deuses por aí. Pelo contrário. Hermes sempre estava bem arrumado, apesar da correria do dia-a-dia. Era o mensageiro de Zeus. Também era o braço direito de seu pai, que igualmente era Zeus. Fazia de tudo, qualquer trabalho, e tinha ciência de todos os fatos relevantes que envolviam seu pai, chefe e soberano, desde planos, estratagemas e objetivos do líder do Olimpo no plano das relações com outros panteões, até as aventuras sexuais de Zeus.
Apesar de Hera odiar os filhos de Zeus concebidos fora do casamento, chegando a matar muito deles e enlouquecer outros, como fez com o próprio Hércules outrora, Hermes constituía a única exceção a essa regra dolorosa. Nunca houve atritos entre ambos. O mesmo se dava com relação à mãe de Hermes, Maia. Em regra, Hera também mandava matar as amantes de Zeus, que não eram poucas. Tinha um grupo tático para isso, que normalmente era fulminado por Zeus quando descoberto. Muitos ascendentes de Argos VIII morreram sob a fúria de Zeus, mais especificamente Argos, II, IV, V e VII. Todavia, com Hermes e Maia era diferente. A inteligência e a perspicácia de ambos sempre encantou Hera. Além disso, Hermes era tão cavalheiro e gentil. Era o filho que sempre quis ter.
Enquanto cumprimentava, abraçava e exaltava seu convidado, Hera percebeu a aproximação de outra divindade: Atena estava prestes a chegar. Hera não queria receber essa convidada.
– Venha, meu “filho”. – Disse Hera – Vou mostrar-lhe seu assento e servi-lo pessoalmente. A ambrósia está muito boa. – ressaltou sorrindo.
Hermes também percebeu a presença de Atena que, como ele, era pontual, e, político, inteligente e sabedor das desavenças entre as duas, deixou-se levar pela anfitriã. Ambos caminharam para o recinto superior, onde ocorreria parte das comemorações.
“As ninfas que recebam a arrogante.” – Pensou a deusa soberana.
Atena chegou voando, tal qual o pai gostava de fazer, mas ao contrário dele, sem muito estardalhaço. Era bela e atlética. Nem alta, nem baixa. Não andava nem rebolava, marchava. Cabelos negros e lisos. Olhos acinzentados. O olhar, sempre atento e sério, nunca deixava de vasculhar o ambiente. Parecia estar permanentemente desconfiada, pronta para a guerra, pronta para se esquivar de algum perigo e contra atacá-lo. Mesmo para eventos comemorativos, não dispensava seu báculo mágico, sua espada e seu escudo, o famoso escudo Aegis. Usava, diariamente, um capacete de guerra, um peitoral dourado ou prateado, uma longa capa vermelha ou roxa e sandálias, cujas tiras amarradas às pernas subiam até o lindo joelho, vestimentas semelhantes às usadas pelos espartanos – era bem conservadora quanto a seus trajes de guerra; não gostava das roupas modernas de guerra nem das provenientes de outros rincões.
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