MÃE DIVINA
A Deusa e o
Cosmos
A Grande Deusa-Mãe tem sido venerada
por todos os povos em todos os tempos. Apesar de seus diversos atributos,
títulos e poderes, todas as divindades femininas emanam de uma única fonte: do
princípio de Vida do Universo. Essa realidade suprema é chamada “A Deusa” e sua
qualidade essencial é conter tudo, estar em tudo.
Nos relatos a respeito da origem do
mundo, fala-se da Criação emergindo de um caos preexistente, ou de um espaço
sombrio, sem limites nem forma, designado às vezes pelo nome de “águas
primordiais” e que se supõe conter a totalidade das potencialidades. Dessa
totalidade caótica nascem entidades distintas que o espírito humano classifica
como boas ou más. Assim, a mitologia criou a imagem de boas mães, como Sofia e a
Virgem Maria, mas também criou as que são consideradas más, como as Górgonas com
cabelos de serpentes cujo olhar petrifica, como Sekmet (Egito), sedenta de
sangue, e outras figuras ambivalentes como Hera e Afrodite (Grécia), Kâlî
(Índia), Hine-nui-te-po (Oceania) e muitas outras. Essa tendência da Deusa de
representar os complementares contrários – o mundo ctoniano e o celeste – caos e
ordem, obscuridade e luz, esterilidade e fecundidade, destruição e criação, etc.
– é habitualmente simbolizada por imagens circulares que lembram o Oroboros, a
serpente que engole a própria cauda. A imagem da lua que, durante o mês lunar,
passa de uma fina claridade crescente à plenitude, da obscuridade à claridade e
vice-versa, é também um símbolo universal da Deusa.
O espírito humano tende a fragmentar e
a categorizar. Ao contrário, o mito da Deusa nos faz conceber um único princípio
de vida, pois Seu corpo – o Cosmos – engloba os diversos estados da Vida, os
diferentes estados da existência. Assim, nascimento e morte são fases distintas
de um mesmo processo contínuo, em que nada morre, mas tudo se transforma.
A vida, a
morte e o processo de regeneração
A maior parte das mitologias divide o
Universo em céu – onde habitam os deuses, Terra – onde estão os humanos, e as
profundezas da Terra e do mar – onde fica o reino dos mortos. Os antigos mitos
da humanidade, ou seja, os da Suméria e do Egito, falam de muitas deusas, como
Ereskigal e Neith, que foram exiladas no inferno.
O mito sumério de Ereskigal e Inanna
mostra bem a ambivalência do princípio feminino do universo em seus aspectos de
vida e morte e a constante possibilidade de regeneração. Inanna desce aos
infernos para fazer voluntariamente a experiência de sua própria morte e de sua
regeneração. Antes, porém, de descer ao reino de Ereskigal, seu lado sombrio,
ela deve atravessar sucessivamente sete portas e despojar-se, a cada vez, de uma
peça de seu vestuário, abandonando, pouco a pouco, os sinais de seu poder. Nos
infernos, Ereskigal fixa-a com seu olhar de morte, mata-a e suspende seu cadáver
em um gancho. Só quando propõe que Dumuzi, seu muito amado filho e esposo, tome
seu lugar, é que Inanna consegue deixar os infernos. Ereskigal é a rainha do
“Grande Mundo de Baixo” enquanto Inanna é a “Rainha do Mundo de Cima”. Ereskigal
divide os mesmos atributos com Inanna, simbolizando ambas, portanto os dois
aspectos de um mesmo princípio.
Os mitos agrários falam do mesmo
processo de vida, morte e regeneração. Em todos eles, a criança simboliza a
semente que é colocada na terra para que germine durante o inverno e renasça sob
a forma de uma nova planta que cresce e amadurece, para ser finalmente colhida.
Dessa forma, o ciclo agrário anual tornou-se uma alegoria da vida humana. Em
Elêusis, os mistérios de Deméter compreendiam ritos secretos durante os quais os
iniciados morriam para a vida passada antes de nascer para uma nova vida. Nesse
meio tempo, sua alma deveria retornar à origem. Reviviam assim, de maneira
simbólica, a descida aos Infernos e o retorno à terra da divindade. Esse
processo é personificado pela Deusa, em que o grão é o símbolo da alma, é a
semente que se transforma em árvore. Aqui a morte é vista como anunciadora da
regeneração.
A Deusa das
águas primordiais
Muitas mitologias concebem o caos
primordial como uma obscura extensão de águas sem limites. Muitas vezes o mundo
é criado pela própria água, outras vezes, por uma divindade criadora que
coexiste com a água desde toda a eternidade.
Esse símbolo da água como fonte de vida
aparece em várias
tradições. No cristianismo, é
exteriorizado na prática do batismo, na medida em que o novo adepto renasce para
uma nova vida. As fontes batismais foram, muitas vezes, comparadas ao útero da
Virgem Maria.
No Egito do período pré-dinástico,
Neith, a deusa do Oceano, personificava as águas celestes e terrestres. Deusa
primordial, continha o mundo e todas as criaturas vivas.
Os mares e os oceanos têm sido
comparados às águas primordiais. A maior parte das “deusas-mães”, como Ísis, no
Egito, foi associada ao mar ou ao oceano, ou ainda considerada como nascida
dele. Como a lua está intimamente ligada às marés, muitas culturas deram às
deusas lunares um poder total sobre as extensões marítimas. A vaca divina com
cornos em forma de lua crescente simboliza a lua em muitas mitologias
indo-européias, e tem como parceiro o touro, que é seu amante e filho. O touro é
um dos símbolos de Poséidon, deus grego do mar. Afrodite, deusa do amor entre os
gregos, na versão de Hesíodo também nasce das águas do mar fecundadas pelo sêmen
de Urano, sendo considerada, pelos gregos, a Grande Deusa das águas (Revista SER
no 8, pág. 42 e seguintes).
A
Terra-Mãe
A Deusa também é um símbolo do planeta
terra e, como tal, está encarnada nas montanhas, nos vulcões, no curso das
águas, nos desertos e em todos os acidentes geográficos.
Como símbolo da Terra-Mãe, podemos
citar a deusa tibetana Klu-rgyalmo, “a rainha que colocou em ordem o mundo
visível”, criando a abóbada celeste com a calota de seu crânio. Com sua carne,
fez a terra; com seus ossos, os oceanos e os mares; com seu sangue, os cursos de
águas; com seus dois olhos, fez o sol e os planetas; com seus dentes de cima,
criou a lua. O trovão, o raio e a chuva nasceram de sua voz, de sua língua e de
suas lágrimas.
Muitas tradições trazem a figura da
Deusa como representante do nosso planeta. Dentre elas, a mais conhecida é Gaia,
a deusa grega, símbolo da natureza, com seus poderes de criação e
destruição.
A Ísis
universal
Na tradição egípcia, o princípio
feminino do universo é representado por Ísis – a Grande Deusa-Mãe. O hieróglifo
de seu nome é um trono, e freqüentemente ela é representada com um trono sobre a
cabeça. Desde a primeira dinastia, os faraós fizeram-se chamar de “Filhos de
Ísis”. O trono real era considerado o seio da deusa, e o néctar que saía de seu
peito lhes conferia o direito divino de reinar.
Os gregos, após conquistarem o Egito,
propagaram o culto a Ísis pelo mundo ocidental. Ísis é a transcrição grega de
Esi, que significa “aquela que está sobre o trono”, isto é, a rainha. Já no
século II de nossa era, Plutarco a descrevia como “o princípio feminino da
natureza [...] que tem uma quantidade enorme de nomes [...], pois ela pode tomar
todo tipo de aspecto e formas.”
Assim, muitos de seus atributos
receberam diversos nomes na mitologia grega e romana, e espalharam-se por todo
o planeta, chegando até o cristianismo como a Virgem Maria.
A Grande Deusa
na tradição hebraica
Shekhina/Sabedoria é a incognoscível e
incorpórea parceira de Iahvé. Nos mitos gnósticos judaicos, Shekhina criou o
mundo e o primeiro homem, mas, devido ao pecado de cada geração, desde Adão até
os Sodomitas, ela se afasta pouco a pouco da terra, até encontrar refúgio no
sétimo céu. A personificação de Shekhina foi, em parte, atribuída à Bíblia em
aramaico que troca a fórmula hebraica “Eu moro” por “a morada da minha
Shekhina”. Na tradição hebraica a Deusa foi reverenciada sob o nome de
Shekhina/Sabedoria; mas, sob o aspecto de Eva, foi aviltada e despojada de sua
divindade. Eva (Hawwâh em hebraico) significa “mãe de todos os viventes”, mas
foi rejeitada por ser considerada como a origem de todos os males do
homem.
Virgem Maria -
a Grande Deusa do mundo cristão
O tema mítico que originou o relato do
nascimento, vida e morte de Jesus Cristo teve origem no Oriente Próximo, muito
antes da era cristã. Maria, como muitas deusas-mães que a precederam (como a
Deméter dos gregos, a Ísis dos egípcios, a Ashtar/Astarté dos sumérios e muitas
outras), deu nascimento a um deus encarnado que morreu para salvar a humanidade
e ressuscitou pouco depois.
A Bíblia não faz muitas referências a
Maria. Ela aparece pela primeira vez na Anunciação como “a mãe que traz o
Salvador”. No entanto, desde o século V a Santa Virgem foi considerada
co-redentora e intercessora privilegiada entre a humanidade e seu filho. A
partir desse momento, torna-se milagrosa, inspira peregrinos em massa no mundo
inteiro e é objeto de um culto que lhe é próprio.
No mundo cristão é venerada com vários
nomes que lembram, sobretudo, sua capacidade de auxiliar os que sofrem. Assim, é
muito solicitada sob os nomes de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, Nossa
Senhora Auxiliadora, Nossa Senhora da Consolação, Nossa Senhora dos Prazeres,
entre outros. É como se os homens intuíssem, de alguma forma, o poder de auxílio
e cura contido no princípio feminino do universo.
Maria Madalena ou, mais
precisamente, Maria de Magdala, que também esteve muito presente na vida de
Cristo, é uma figura central entre os gnósticos, para os quais o conhecimento é
a única via em direção ao divino. Enquanto prostituta arrependida, Maria
Madalena possuía um conhecimento perfeito das coisas deste mundo; enquanto
confidente ou, segundo certas tradições, esposa de Cristo, era um reservatório
de sabedoria espiritual. Buscou o conhecimento de Deus encarnado no concreto da
vida. Na Pistis Sophia, um texto egípcio do século III, Jesus louva várias vezes
o saber de sua Mãe e afirma: “Maria de Magdala e João devem ser colocados acima
de todos os meus discípulos e de todos os homens que serão iniciados nos
mistérios do Inefável”.
A Deusa
guerreira
As deusas guerreiras são freqüentemente
associadas ao sol e às estrelas. Os milhões de corpos celestes poderiam
facilmente ser comparados a um exército de soldados reluzentes, esforçando-se
para combater a obscuridade, isto é, combater a ignorância. Na mitologia eslava,
Zarya, a deusa da aurora, é uma grande guerreira, que nasceu armada para
dissipar as forças da noite. Muitas deusas guerreiras são representadas vestindo
uma armadura flamejante, ou cobertas de ouro, de prata e de jóias.
Os poemas sufis são, na aparência,
poemas de amor, mas, na verdade, descrevem, em linguagem cifrada, a sede pelo
divino experimentada pelo místico. Nesses poemas, a “Bem-Amada” simboliza a
divindade, ou a alma, e o “amante” é o místico. Deus aqui é representado como
sendo feminino. A “Bem-Amada” descrita pelos sufis tem um aspecto guerreiro. Ela
é a quintessência de uma deusa virgem guerreira, alternadamente feroz e
ameaçadora, doce e sedutora.
A Deusa
oriental da compaixão
A divindade preferida dos chineses
chama-se Kouan-Yin, a deusa da Clemência. É conhecida como “Aquela que escuta as
preces, as queixas e os prantos”. Conhecida no Japão com o nome de Kan-non (ou
Kannon), foi importada da China por missionários budistas, sob a forma de um
bodhisattva.
Segundo a teologia budista, um
bodhisattva é um ser esclarecido que, durante muitas gerações de meditação e de
contemplação, aprendeu a escapar ao ciclo de mortes e renascimentos que aflige o
resto da humanidade, mas escolheu reencarnar-se para ajudar os outros seres
humanos a buscarem a salvação.
Kouan-yin era, na origem,
Avalokitesvara, um discípulo nascido de uma lágrima derramada por Buda diante
dos sofrimentos da humanidade. Essa transformação em mulher pode, à primeira
vista, parecer um enigma numa religião que considera as mulheres menos perfeitas
do que os homens. Mas não podemos esquecer que o budismo, quando foi introduzido
na China (no séc. III), sofreu influência do taoísmo e do confucionismo. É
possível então concluir que Avalokitesvara foi fundido em um sincretismo com uma
divindade feminina local. Se levarmos em conta que um bodhisattva reúne em si o
saber e a compaixão, não é de se surpreender que Avalokitesvara tenha sido
unificado à Deusa. Como a Virgem Maria do mundo cristão, Kouan-yin ajuda os que
a procuram nas horas difíceis, acolhendo-os e dando provas de clemência e
piedade.
A Deusa e a
busca do herói
A Deusa está estreitamente relacionada
à busca do herói. Algumas vezes é ela que inspira a sua jornada; outras vezes,
aparece para ajudá-lo e guiá-lo em sua tarefa, ou para colocar-lhe obstáculos no
caminho. Pode ainda aparecer como o obstáculo final, como no caso de Medusa, a
Górgona, que devia ser morta por Perseu. Mas ele não seria capaz de liquidá-la
sem a ajuda de Atena, a deusa da guerra e da sabedoria (Revista SER no 7, pág.
33). Tudo acontece como se o herói fosse um simples peão no tabuleiro de xadrez
celeste, em torno do qual se defrontam os múltiplos aspectos da Deusa.
A busca pode ser interpretada como uma
viagem de descoberta, a viagem do herói que sai em busca do próprio
aperfeiçoamento, tentando conciliar dentro de si os vários aspectos da
Deusa.
A conquista é simbolizada por uma
“recompensa”, geralmente apresentada na figura de uma bela jovem, símbolo de sua
própria alma. Sua prova consiste em “se comportar” de maneira apropriada em cada
um dos aspectos da Deusa a fim de atingir o equilíbrio interior.
A Deusa e o
trabalho gurdjieffiano
Fizemos acima uma síntese de algumas
faces da Deusa em diversas tradições. Poderíamos relatar inúmeras outras, mas
essa não é a proposta deste trabalho. O importante aqui é notar que, sob a forma
de um mito, o mesmo aspecto é relatado em várias tradições. Simbolizam os vários
estados da Energia Vital, que vão do mais grosseiro ao mais sutil.
Portanto, a energia que tudo permeia no
universo é uma única energia, com diversos graus de materialidade, isto é,
diferentes estados vibratórios.
Em seu Ensinamento, o Sr. Gurdjieff
deixa claro que “o homem é uma imagem do mundo e é impossível estudar um sem
estudar o outro”1. Diz que “o mundo é feito de movimentos ondulatórios ou de
matéria em diferentes estados de vibração. A velocidade das vibrações está na
razão inversa da densidade da matéria”2. Assim, “quanto mais elevada for a
‘densidade da matéria’, mais baixa será a ‘densidade de vibrações’ e
vice-versa”3.
Portanto, o mundo manifestado possui
vários planos de diferentes graus de materialidade. Com o homem, acontece a
mesma coisa. Ele é um Universo em miniatura. Diz o Sr. Gurdjieff: “É necessário
compreender bem a ideia da completa materialidade de todos os processos
interiores, os psíquicos, intelectuais, emocionais, voluntários e outros,
inclusive as aspirações poéticas mais exaltadas, os êxtases religiosos e as
revelações místicas”4.
Em nossa vida cotidiana, vivemos em
estados vibratórios muito densos, se comparados com as vibrações mais finas
existentes em outros planos do universo. Isso porque a energia que nos anima
está atuando sem que tenhamos consciência dela. Não entramos em contato direto
com ela. Vivemos apenas os estados mais grosseiros da Deusa.
A ideia central do trabalho
gurdjieffiano é a idéia de evolução. A grande meta neste mundo deve ser a
evolução do nosso Ser. Para atingir essa meta, precisamos refinar nossa energia
vital. No número anterior desta publicação, falamos da possibilidade da
transformação dessa energia, usando o mito da deusa Vênus para explicá-la sob o
enfoque do Ensinamento gurdjieffiano (Revista SER no 8, pág. 44). Vimos que é a
atenção consciente sobre a energia vital que leva à sua sutilização e
conseqüente contato com os níveis superiores do universo.
Conclusão
Portanto, os vários aspectos da Mãe
Divina possuem materialidades de ordens diversas que só podem ser acessadas por
meio de um trabalho consciente. Ao estabelecer um contato direto com o potencial
energético que é a grande Deusa, começamos a tocar um fino sentimento de
alegria, paz e felicidade em nosso peito. A partir daí nossa vida cotidiana
adquire uma outra dimensão. Passamos a agradecer o simples fato de existir. Como
heróis, renascemos para uma nova vida cheia de cores e possibilidades.
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