sexta-feira, 5 de junho de 2015

A DERROTA DO MONSTRO


Comemorava-se o décimo milênio da derrota do monstro Tifão, última ameaça séria aos deuses olimpianos. Com efeito, Zeus, Poseidon, Hades e os demais deuses gregos, após um sem número de batalhas, que se iniciaram com a primeira guerra mundial contra os titãs, passando por inimigos perigosos como Tártaro, Gaia, Erebus, os gigantes e, por fim Tifão, gozavam de um longo período de paz. Seus reinos prosperaram e se mantiveram estáveis. Evidentemente, existiram algumas rusgas dentro do panteão grego e com outros panteões menores. Desnecessário dizer que tais entreveros causaram reflexos na Humanidade – em geral guerras e desastres naturais. Muitos desses deuses se odiavam, mas, em nome do Olimpo e em nome de Zeus, tais animosidades eram abafadas ou contornadas. O filho caçula de Cronos não queria mais inimigos, nem perder o controle do seu império. Após tantas guerras foi alçado ao Poder Supremo. Era tido como o líder e respeitado por todos. Governava com o auxílio de Atenas e Hermes, seus filhos favoritos. Vangloriava-se de seus feitos e de seu Poder. Apesar de gostar da guerra e não negar fogo, ou melhor, raios, a ninguém, em razão da sua conhecida impetuosidade, evitava desavenças e buscava dirimir as que surgiam entre seus pares, o que não era pouco trabalho. Toda semana havia alguma querela ou intriga palpitando sob seu palácio, no topo do Olimpo. Enfim, Zeus governava de forma firme, mas com serenidade, pois amava o Poder e sabia que a discórdia e a truculência, a longo prazo, poderiam lhe privar da soberania, como ocorrera com Urano e Cronos.
Com este espírito, de se perpetuar no comando, procurou não só resolver de forma rápida e firme todos os conflitos familiares, sem demonstrar medo e sem anular seus filhos, irmãos e irmãs, mas também buscou manter boas relações com outros panteões. Também evitou intervir nos rumos da Humanidade, atendendo, com isso, ao pedido de Prometeu – embora acompanhasse, de longe e com certa apreensão, o desenvolvimento dos terrestres mortais.
Apesar de os humanos serem considerados como uma raça inferior e pouco relevante para os deuses e para os desígnios do universo, não sendo vistos como um perigo para a primazia dos deuses, Zeus, sábio que era, e seus irmãos – com exceção de Hera – bem como seus filhos, Atena e Hermes, os respeitavam como irmãos, não pela potencialidade dos humanos, mas porque eram seres vivos dotados de sentimentos, racionalidade e personalidade. E isso bastava para que a Humanidade fosse respeitada.
A comemoração de qualquer vitória dos olimpianos foi sempre um evento grandioso. Zeus convidava todos os deuses do Olimpo, com exceção de uma deusa. Até mesmo Hades, muito mal quisto por todo ou quase todo o Olimpo, e Perséfone, que desde que fora raptada por seu esposo passou a ser reservada e calada, marcavam presença nestas comemorações – a contragosto, obviamente. Hades sempre fora discreto, sendo a antítese de seu irmão, Zeus.
Nestas datas comemorativas, o Olimpo fervia antes, durante e depois das festas, obviamente por motivos diversos. O estresse as antecediam, os excessos as acompanhavam e as brigas as sucediam.
Sempre que havia festa, era a mesma coisa. Homens, Centauros, Hárpias, Manticores e toda sorte de criatura corriam de um lado para o outro para atender Hera, responsável pela organização dos eventos. Hera possuía um rosto arredondado, seus trajes eram próprios de uma divindade conservadora. As roupas bem alinhadas e costuradas, como gostava, escondiam todas as partes do corpo feminino que pudessem causar desejos nos homens, mulheres, deuses e deusas. Não usava decote, o que irritava Zeus, seu vestido era longo e escondia inclusive os pés. Os ombros e os braços eram cobertos por uma manta. Usava vários apetrechos na bela cabeleira, de forma a não deixá-la solta, mas ainda assim tinha o cuidado de proteger o belo pescoço da concupiscência alheia. O corpo era esguio, embora seus fartos e saborosos seios a ela concedessem um ar imponente e hipnotizante. Tinha a dignidade de uma mulher casada e de uma mãe, e caracterizava-se por ser muito exigente, especialmente nestas datas em que haveria convidados e convidadas divinas.
Tratava os serviçais com rédeas curtas. Erros graves eram punidos severamente. Ao seu lado, o inseparável Argos VIII, membro de uma seleta família que ao longo da história colaborou com a Rainha do Olimpo. Seus cem olhos, que se revezavam 24 horas por dia, de forma que nunca todos ficassem fechados ao mesmo tempo –  evitando, desta feita, a fadiga coletiva dos globos oculares – ajudavam Hera na fiscalização e organização dos trabalhos. Todos os servos do Olimpo temiam e odiavam Argos, porque este era extremamente fiel à sua ama. Um dedo duro de primeira linha. Não pensava duas vezes em apontar um erro, por menor que fosse, e o responsável pelo equívoco para a rigorosa deusa. Às vezes, tinha-se a impressão que o escravo Argos VIII, na ânsia de demonstrar serviço, fazia questão de apontar o erro alheio na frente de Hera.
Antes fosse só isso. A falha de caráter de Argos VIII era o seu maior vício.
Os preparativos para a grande festança já estavam prontos. Hera, Argos VIII e todos os seres não divinos do Olimpo trabalharam arduamente para esta festa. Tudo, repita-se, tudo deveria estar pronto, em perfeita harmonia, para a chegada dos convidados. Erros não seriam tolerados.
Naquele dia, em que se comemorava a vitória triunfante de Zeus sobre Tifão, uma data considerada mais do que especial pelo soberano do Olimpo, nos momentos que antecediam a chegada dos convidados, Hera e Argos VIII passaram em vistoria o palácio pela décima e última vez. Enquanto ambos se incumbiam de avaliar o trabalho, a limpeza e a organização do ambiente preparado para aquela festa, seus subordinados estavam tensos. Qualquer falha poderia custar-lhes severas punições ou até mesmo a morte em casos extremos de desleixo. Argos VIII, com suas “visões acuradas” chegava ao disparate de analisar com seus inúmeros olhos da mão prato por prato, copo por copo, toalha por toalha. Queria se certificar que não haveria impurezas na comida dos convidados. Seus olhos situados nos membros inferiores verificavam se o chão estava branquinho, sem poeira ou qualquer outro tipo de resíduo. Hera, de sua banda, passava em vistoria pelos demais aposentos e jardins. Observava a harmonia da decoração. Sempre tinha dúvidas. Será que a cortina dourada combinaria com o tapete vermelho cor de sangue? Será que a estatua de Tifão derrotado estaria muito grande em relação à de Zeus? Os puffs estariam de acordo com a preferência dos convidados? A Ambrósia deveria ser colocada em vasos grandes ou pequenos? Iguais ou diferentes? A piscina estaria na temperatura ideal? O lugar destinado a Afrodite, atrás de todos os outros deuses, na parte menos iluminada do templo, ao lado de seu repugnante marido, Hefesto, longe da mesa de alimentação, da piscina e de onde ela e seu marido, Zeus, ficariam na maior parte da festa, era realmente o pior que poderia arranjar? Será que Zeus perceberia se Afrodite ficasse com um puff fora do templo?
Enquanto Hera estava imersa nestas indagações de alta relevância, Argos VIII, no ambiente ao lado, fiscalizava a limpeza das colunas. Repentinamente, a criatura, sem motivo aparente e sem que ninguém percebesse, manchou uma pilastra.
Ao lado da pilastra estava uma bela serviçal, uma humana alçada ao Olimpo com promessas de riquezas e de vida fácil, mas que acabou sob os desígnios da severa deusa do casamento e da fidelidade conjugal, como tantas outras. Foi vítima do tráfico de mulheres terreno e acabou no Olimpo. A moça em questão era a responsável pela limpeza das colunas do templo de Zeus.
Argos, maliciosamente, apontou para ela a sujeira. A moça entrou em desespero. Por muito menos vira Hera enlouquecer outras domésticas que também falharam em seu mister. Emitiu um leve grito, que logo foi abafado pela mão asquerosa e cheia de olhos de Argos. Silêncio! Por sorte de ambos, Hera não ouviu. A deusa, em outro aposento, estava com a cabeça fervilhando em razão da aproximação da chegada dos convidados.
Argos VIII, ainda com as mãos sobre a boca da moça, perguntou, aos sussurros:
– Você sabe o que eu quero, não sabe? – e apalpou o farto seio da garota.
A mulher respondeu afirmativamente com o movimento de sua cabeça. As moças que estavam do lado se seguravam para não chorar. Ele sempre fazia isso. O dia delas também chegaria.
– Hera suprema! – proclamou repentinamente Argos VIII, indo em direção da deusa no outro aposento.
– Sim, Argos. Algum problema? – respondeu.
Todos os serviçais tremeram. Estavam com medo, angustiados, desprotegidos, à mercê de uma criatura torpe, podre, interesseira e rasteira. O que ele faria?
– Vistoriei o templo milímetro por milímetro e não há qualquer imperfeição para ser corrigida.
– Ótimo! O senhor está dispensado. Recolha-se. Não quero que meus convidados vejam você. Leve as empregadas também. Não suporto gentalha! – disse Hera que nunca aparecia na sua forma física para os mortais, a não ser na hora de puni-los ou matá-los. Em regra, apenas seus olhos, ampliados, apareciam diante dos mortais e de criaturas não divinas.
Argos VIII se retirou, voltou ao ambiente em que estava, limpou a mancha que tinha feito na coluna, pegou seu prêmio pelas mãos, determinou que as empregadas voltassem a seus aposentos e retirou-se.
Finalmente chegou a hora da comemoração. Os convidados não tardariam a chegar. Hera se posicionou, fogosa e soberana, no trono situado na antessala do templo de Zeus, próprio para receber os convidados. Outrora havia dois tronos, mas como ela sempre ficava responsável pela recepção e como Zeus nos últimos anos vivia mais fora de casa do que em seu palácio, mandou arrancar o outro trono e jogá-lo fora, de raiva mesmo. Pelo menos não teria que explicar, na chegada de cada convidado, a ausência de seu marido, pois com apenas um trono na entrada, quem não seria impelido a perguntar sobre o trono vazio e sobre Zeus? Sim, dar um fim no trono do marido fora uma das melhores atitudes que havia feito na vida. E o melhor de tudo, é que ele fingiu que não notou a ausência de seu assento. Certamente ficou com medo de entrar em mais uma discussão doméstica sem fim com sua querida esposa.
As ninfas especialmente designadas para servir os convidados já estavam a postos. Eram belas e imortais. Hera tinha vontade de fulminá-las, porque padecia do mal do ciúme e porque conhecia o marido que tinha, mas elas tinham a função de entreter alguns convidados carentes ou promíscuos. Além disso, desde que não se oferecessem para seu esposo e se mantivessem longe dele, não haveria problema.
Hermes, como sempre, foi o primeiro a chegar.
– Hermes, querido! Pontual como sempre. – festejou a deusa solitária, beijando a face do forasteiro. – Há quanto tempo não nos vemos! – exclamou – E sua mãe como está? – perguntou sincera.
– Hera, doce rainha do Olimpo, Maia, minha mãe, manda lembranças. – respondeu Hermes, sempre muito educado, principalmente com Hera, pois conhecia seu temperamento difícil. Seu raciocínio rápido o impedia de levantar indiscrições desnecessárias, como a de lembrar a Hera que se viram há poucos dias e que, nos últimos dez mil anos, a convivência era praticamente diária. Hermes era alto e magro, moreno claro e possuía o corpo atlético, porque corria muito. Não era bonito, nem feio. Usava suas inseparáveis sandálias aladas. Seus cabelos castanhos eram volumosos, mas não davam a impressão de que fosse um desleixado, como outros deuses por aí. Pelo contrário. Hermes sempre estava bem arrumado, apesar da correria do dia-a-dia. Era o mensageiro de Zeus. Também era o braço direito de seu pai, que igualmente era Zeus. Fazia de tudo, qualquer trabalho, e tinha ciência de todos os fatos relevantes que envolviam seu pai, chefe e soberano, desde planos, estratagemas e objetivos do líder do Olimpo no plano das relações com outros panteões, até as aventuras sexuais de Zeus.
Apesar de Hera odiar os filhos de Zeus concebidos fora do casamento, chegando a matar muito deles e enlouquecer outros, como fez com o próprio Hércules outrora, Hermes constituía a única exceção a essa regra dolorosa. Nunca houve atritos entre ambos. O mesmo se dava com relação à mãe de Hermes, Maia. Em regra, Hera também mandava matar as amantes de Zeus, que não eram poucas. Tinha um grupo tático para isso, que normalmente era fulminado por Zeus quando descoberto. Muitos ascendentes de Argos VIII morreram sob a fúria de Zeus, mais especificamente Argos, II, IV, V e VII. Todavia, com Hermes e Maia era diferente. A inteligência e a perspicácia de ambos sempre encantou Hera. Além disso, Hermes era tão cavalheiro e gentil. Era o filho que sempre quis ter.
Enquanto cumprimentava, abraçava e exaltava seu convidado, Hera percebeu a aproximação de outra divindade: Atena estava prestes a chegar. Hera não queria receber essa convidada.
– Venha, meu “filho”. – Disse Hera – Vou mostrar-lhe seu assento e servi-lo pessoalmente. A ambrósia está muito boa. – ressaltou sorrindo.
Hermes também percebeu a presença de Atena que, como ele, era pontual, e, político, inteligente e sabedor das desavenças entre as duas, deixou-se levar pela anfitriã. Ambos caminharam para o recinto superior, onde ocorreria parte das comemorações.
“As ninfas que recebam a arrogante.” – Pensou a deusa soberana.
Atena chegou voando, tal qual o pai gostava de fazer, mas ao contrário dele, sem muito estardalhaço. Era bela e atlética. Nem alta, nem baixa. Não andava nem rebolava, marchava. Cabelos negros e lisos. Olhos acinzentados. O olhar, sempre atento e sério, nunca deixava de vasculhar o ambiente. Parecia estar permanentemente desconfiada, pronta para a guerra, pronta para se esquivar de algum perigo e contra atacá-lo. Mesmo para eventos comemorativos, não dispensava seu báculo mágico, sua espada e seu escudo, o famoso escudo Aegis. Usava, diariamente, um capacete de guerra, um peitoral dourado ou prateado, uma longa capa vermelha ou roxa e sandálias, cujas tiras amarradas às pernas subiam até o lindo joelho, vestimentas semelhantes às usadas pelos espartanos – era bem conservadora quanto a seus trajes de guerra; não gostava das roupas modernas de guerra nem das provenientes de outros rincões.
Entrou no templo. Notou que o trono posto na frente da entrada estava vazio. No salão havia apenas algumas ninfas. Resolveu esperar ali. Não entraria no salão de festas sem permissão, apesar de ter sido convidada pessoalmente por Zeus. Como lhe incomodava o fato de não ter nada para fazer, e como seus pares costumavam se atrasar, inclusive –  principalmente – o anfitrião, encostou seu báculo mágico em uma das paredes do templo, sacou sua espada e com ela fez um rápido movimento em formato circular na vertical. O repentino som da espada rasgando o ar e a luz dourada que a arma em movimento emitiu assustou todas as ninfas do salão, em especial aquela que estava do outro lado do recinto, na mira de Atena. Ambas se olharam, olho no olho. Silêncio. Uma sucessão de movimentos rápidos, bélicos e progressivos de Atena criou uma verdadeira sinfonia de sons e infindáveis clarões de luzes douradas na casa de Zeus. Ao cabo do movimento bélico, a ponta da espada de Atena estava estacionada na ponta do nariz da ninfa. A ninfa, no primeiro plano, via a ponta letal, brilhante e afiada da espada e ao fundo a imagem ofuscada do rosto da deusa. A ninfa, então, deixou de olhar angustiada para a ponta da arma e focou nos olhos atentos da deusa, o que fez o instrumento letal ficar borrado na visão da serviçal. A ninfa desmaiou. Assustadas, as demais ninfas a socorreram. Constrangida, Atena voltou ao seu lugar e resolveu ficar parada. Só queria treinar para passar o tempo, oras.
Com o decorrer do tempo, outros convidados chegaram. Ares entrou no palácio suado e sujo de sangue. Um grandalhão mal encarado cheio de músculo. Agressivo como sempre, menosprezou a presença de Atena, sua rival, que ainda aguardava autorização para ingressar no recinto. Ares, por sua vez, entrou, viu o trono vazio e foi incontinenti para a sala onde estavam Hermes e Hera, sua mãe. Cuspiu no chão. Com quase dois metros de altura e músculos por todos os lados, Ares vestia apenas uma tanga bárbara de guerra e estava protegido por um capacete dourado que lhe cobria toda a cabeça, com exceção do queixo, da boca, do nariz e dos olhos. Estava sem camisa. Gostava de mostrar os músculos. Assim como Atena, também possuía uma capa. O cheiro de suor, sangue e testosterona invadiu o ambiente e o seguiu. Hera, certamente, não iria gostar. Estava sujando todo o chão, o que provocava uma revolta silenciosa entre as ninfas que ainda guardavam o salão. Pombas, tanto trabalho e dor de cabeça para um boçal daqueles sujar tudo gratuitamente?!
A deusa da sabedoria tinha pena dele. Tão burrinho e explosivo. Muito fácil de ser derrotado. Atena sempre o derrotava nas guerras em que participavam e em jogos – jogos de estratégia nos vídeos games, jogos de guerra promovidos por Zeus, jogos de guerra de tabuleiro e etc… O apelido de Ares no Olimpo, mesmo entre os deuses, era “escrotão”. Por óbvio, ninguém falava abertamente isso, pois de certo seria punido, maxime se fosse um deus de segundo escalão ou um qualquer do Olimpo.
Atena e Ares são os deuses da guerra do Olimpo, ambos filhos de Zeus, mas de mães diversas. Ares e Hera não reconheciam Atena como parte da família. Ambos a tratavam como se fosse uma filha bastarda, embora ela tivesse nascido da relação de Zeus com Métis, primeira esposa de Zeus e, portanto, também legítima, conforme explicava Atena uma ou outra vez para sua arquirrival, a deusa do casamento. Apesar destas palavras destinadas à Hera, Atena tinha convicção que “filho” era “filho”, independentemente da origem. Pouco importava para a prole se seus pais eram ou não casados. A culpa pela traição não era das crianças, não tinham que ser discriminados por eventual deslize dos pais. Assim pensava Atena.
Logo chegaram outros convidados.
Poseidon, rival de Atena – e deus do mar – era um homenzarrão de longas barbas e cabelos castanhos claros, com a pele queimada de sol; Afrodite, a deusa da beleza e rival de Atena; Hefestos, que já tentara estuprá-la; Deimos, Fobos e Harmonia, filhos de Ares e de Afrodite; Ártemis que não dava a mínima para ela; Cúpido, filho de Afrodite; Apolo, que se julgava o sucessor natural de Zeus; Hércules; Dionísio, bêbado e que achava sua irmã unilateral chata – riu dela prostrada na porta do palácio de Zeus, aguardando autorização para entrar -, dentre outras divindades. Um verdadeiro desfile de gente estranha. Atena odiava essas festanças promovidas por seu pai. Vaidade. Orgulho próprio. Um dia isso iria derrubá-lo.
A festança esquentava no outro recinto. Hera e Ares já haviam discutido algumas vezes – fedor, sujeira, má-educação de Ares, copos quebrados e arrotos eram os motivos dos entreveros. Apesar da festa, ainda faltavam Zeus e alguns convidados. Normalmente Zeus era o último a chegar. Gostava de grandes entradas. E isso irritava Atena, Hera, Ares, Poseidon… Por outro lado, Zeus e Hermes eram os únicos deuses cuja companhia lhe agradava de verdade. Hera a invejava, Afrodite a desdenhava, Poseidon e Ares a fuzilavam com o olhar.
Já anoitecia, quando mais um convidado chegou: Hades. Este deus estava acompanhado de sua amada esposa, Perséfone, e de sua comitiva: Cérbero, Hypnos, Tanatos e as fúrias. Todos, com exceção das fúrias que vieram voando, estavam devidamente acomodados em uma grande (era do tamanho de um grande navio de luxo) e soberba carruagem negra, puxada por cavalos negros voadores. Não fosse o brilho que o Olimpo emitia naturalmente, a chegada do sombrio convidado não seria notada na noite da cor do universo daquela data.
A carruagem aterrissou em frente ao palácio do soberano Zeus. As fúrias, criaturas extremamente desagradáveis, aterrissaram sobre o transporte cor de ébano. Logo a porta se abriu e Cérbero saltou para o chão. O cão de três cabeças, forte e poderoso, do tamanho de um elefante, farejou todo o ambiente e correu de um lado para o outro, ágil e dócil, apesar da aparência intimidadora. Depois desceram Hypnos e Tanatos, irmãos gêmeos, e fieis seguidores de Hades. Ambos ostentavam um ar que remetia à nobreza e à arrogância, embora não se pudesse afirmar isso categoricamente.
Logo depois deles, desceu Hades. Ao contrário de Zeus, Hades era reservado, silencioso, introspectivo e contido. Trajava um longo manto preto que lhe cobria todo o corpo. Os longos cabelos e a longa barba também eram negros como sua carruagem. Lembrava muito um vampiro, embora a face de Hades fosse muito parecida com a de Poseidon e de Zeus. Perséfone apareceu na porta da imensa carruagem, era simplesmente linda. Tão bela quanto Afrodite ou Nêmesis. Não obstante sua beleza tivesse um quê de languidez e sobriedade, a pele alva e impecável proporcionava um belo contraste com o negrume que a cercava. Revelava um belo decote, enfeitado por belas pérolas e pedras preciosas de tonalidades muito escuras. Com certeza, não fosse o tom sóbrio e sombrio adotados por ambos, Hades e sua esposa formariam um belo casal.
Hades, delicado e atencioso, ajudou sua esposa a descer do imenso veículo. Perséfone acenou agradecendo a educação do esposo. Formavam um casal com ares aristocráticos e tradicionais. Hades para onde quer que fosse fazia questão de ter a companhia de sua esposa. Buscava aproveitar cada instante, cada momento com a bela e doce Perséfone. Sua vida era dividida em dois polos estanques e incomunicáveis: a vida com Perséfone e a vida sem Perséfone. Em razão de desavenças pretéritas, Hades fora condenado a estar junto de sua amada apenas durante metade do ano. Na outra metade, ela voltava para o Olimpo, junto de seu pai, Zeus, e da mãe e inimiga letal, Deméter. Quando ela partia para o Olimpo, o reino de Hades se entristecia. Hades não tinha a sua amada esposa, Cérbero não tinha com quem brincar, os subordinados de Hades tinham menos autonomia e tempo livre, os condenados recém-chegados aos infernos tinham penas mais duras e aqueles que já haviam sido apenados sofriam com a execução penal mais rigorosa, fria e inflexível, sem a graça, a sensibilidade e a leveza que Perséfone impunha ao ambiente. Todos sabiam que a solidão era o maior tomento de Hades. Teve este deus o infortúnio de receber a parte menos generosa do mundo. Zeus ficou com o esplendor e com a imensidão do ceu, Poseidon com a beleza, riqueza orgânica e o frescor dos oceanos e ele, Hades, ficou com as trevas… Sem a luz solar para beijar-lhe a face, sem florestas ou animais silvestres, sem água límpida, vívida e translúcida, sem o ar puro, sem a felicidade e sem o amor próprio dos seres banhados pela luz. Era triste viver em um mundo desprovido de belas mulheres, sem a felicidade, a delicadeza e a graciosidade do ser feminino. As poucas criaturas feminilizadas que lhe faziam companhia eram almas mortas, harpias fieis, mas horríveis, imundas e fedorentas, e suas fúrias – deusas vingativas, desagradáveis, histéricas e obstinadas a punir humanos infratores.
Sem o amor, sem a presença de Perséfone, Hades era infeliz. Já o era antes de conhecê-la, mas depois que a conheceu, o soberano do submundo não sabia mais viver sem ela. E quando ela partia, eram longos seis meses de solidão e tormentos no submundo, também chamado de Hades. Por isso, Hades, o deus, não se separava de sua musa, ainda que isso a incomodasse e trouxesse constrangimentos para a bela… e isso lhe trazia profundas mágoas. Mas o que podia fazer?
Levava-a aos Campos Elíseos semanalmente. Um mar verdejante com frutos e animais e iluminação similar à solar no meio do inferno negro e angustiante. Enquanto lá estavam, os sons da morte, das dores, dos grunhidos, dos lamentos, da agonia, do sofrimento das almas que vagavam e sofriam não os perturbavam. O Muro das Lamentações os protegia desses dissabores, dava intimidade para ambos.
Entretanto, apesar da devoção de Hades, de seu amor e paixões profundas por sua deidade, o deus do submundo sabia que sua amada não era feliz onde vivia. Sabia que ela estava ali para evitar conflitos entre Hades e os deuses do Olimpo, mormente sua mãe, que odiava o raptor da filha. Sabia que ela não o amava com a mesma intensidade que era amada. Sabia que a deusa suportava muitas pressões advindas dos ceus. Sentia-se culpado e egoísta pela situação da esposa, mas não podia viver sem os encantos de sua diva.
Hades sempre pensou em meios de acabar com a divisão, para ele injusta, mas… se indispor com Zeus e Deméter? Ambos eram deuses muito queridos no Olimpo, ao contrário dele, que não era bem quisto por ninguém, a não ser pelo próprio Zeus e por Hermes.
Por seu turno, Perséfone sentia-se fraca e sem saída. Não sabia para onde ir, o que fazer, o que dizer. O marido e a mãe se odiavam. Viviam uma guerra fria há milênios, sendo ela o objeto de desejo de ambos. Ambos a amavam e ela, Perséfone, à sua maneira, amava e compreendia ambos. O coração da rainha do submundo estava tão dividido quanto seu tempo. Sentia que vivia para os outros. Não tinha vida própria. Essa sina era angustiante e talvez perdurasse por toda a vida. Nos momentos mais difíceis, estava sozinha. Abrir-se com a mãe e fazê-la explodir em fúria? Colocar em risco vidas de inocentes como ocorreu quando do rapto da primavera, ocasião em que a Agricultura fora tirada de todos os seres vivos? Desabafar com o marido, cujo poder era imenso e que lutaria por ela contra e tudo contra todos, mas que jamais a entenderia? Deméter, a mãe zelosa, protetora e amorosa, cuja filha lhe fora tirada de forma abrupta. Hades, o marido poderoso, sábio, atencioso e que a amava de verdade. Até quando aguentaria esse peso? Até quando abriria mão de sua liberdade para evitar conflitos entre os entes amados?
Deméter, que já estava na casa de Zeus e Hera, queria ter sua filha integralmente com ela. Nunca aceitou expressamente a divisão, muito menos o rapto de Perséfone, bem como sempre rejeitou o reino do submundo. Sua filha merecia mais! Eram visíveis os efeitos nefastos que a escuridão acarretava na deusa da primavera, Perséfone. Desde o odioso rapto, ela nunca mais fora a mesma. Se tornara uma deusa madura, o brilho da inocência desaparecera.
E assim viviam Hades, Perséfone e Deméter: em uma grande montanha russa de sentimentos e emoções. Hades ignorava as alfinetadas de Deméter, que espezinhava Zeus e Perséfone para que tomassem uma atitude. E Perséfone no meio do turbilhão. Uma hora ela estouraria e mandaria um deles às favas… ou ambos.
No meio da festa, com todos no recinto principal, inclusive Atena – que foi convidada por Hermes a fazer parte da comemoração. Um telefone celular tocou. Hermes pediu licença para Hera, que falava mal de alguns convidados, e atendeu:
– Alô?
– Todos chegaram? – perguntou a pessoa do outro lado da linha, com voz imponente, firme, confiante e decidida.
– Sim, estão todos. – respondeu Hermes protegendo o celular e a boca com as mãos, de forma a evitar que o barulho da festança, principalmente das risadas de Ares, prejudicasse ainda mais a difícil comunicação.
– Atena também? – perguntou com a voz grave e séria.
– Sim, eu já a chamei. – respondeu rapidamente Hermes.
Click.
Um grito feminino de terror ressoou no ambiente, chamando a atenção geral. Todos olharam em direção a Hebe, esposa de Hércules. Ela mirava, apavorada, para a grande e suntuosa varanda do templo, de onde Zeus e Hera costumavam fazer seus comunicados para os subalternos do Olimpo, usando-a, pois, como parlatório.
Lá estava Tifão, à frente do céu noturno limpo e estrelado.
Uma criatura feroz, medonha e funesta, com quase três metros de altura, de pele reptiliana, cuja coloração variava de verde escuro a laranja escuro. As feições humanizadas dividiam espaço com serpentes ferozes que percorriam todo seu corpo. Os olhos verdes recheados de fúria miravam Hebe. Os músculos pulsantes estavam prontos para uma nova guerra contra o Olimpo. Portava garras cujas pontas possuíam pequenas cabeças de dragões. Cornos negros saíam pelos ombros, joelhos e cotovelos, tornando a aberração uma verdadeira máquina assassina. Sua cauda movia-se freneticamente, excitada perante a iminência do ataque fatal. As narinas expeliam freneticamente, durante a respiração, um ar fétido e marrom, que tornava o ambiente sujo, pesado e entorpecente.
– Tifão está de volta! Fujam todos! – gritou Dionísio, muito bêbado. O deus do vinho e das festas tentou correr, mas tropeçou e caiu de cara no chão. Tomara muita ambrósia durante a festa. Por cima dele, passaram ninfas, deusas e deuses assustados. Gritos de pavor eram ouvidos por toda a parte. O tumulto estava generalizado. Hera, Afrodite e Hebe se evadiram rapidamente. No recinto ficaram Hades, protegendo sua esposa e com sua espada em riste, Poseidon, portando seu tridente em posição de ataque, Atena, com sua espada, seu báculo e o pingente da deusa Nike. Esses três deuses ficaram na linha de frente. Hades visava antes de tudo proteger sua querida esposa e nada mais importava para ele. Deu rapidamente à esposa o seu famoso capacete da invisibilidade. Gesticulou para que ela se retirasse dali imediatamente. Poseidon, apesar do medo que sentia, estava pronto para atacar e levar a luta às últimas consequências. Aquela seria sua oportunidade de sair debaixo da sombra de seu irmão Zeus. Se no passado ele conseguira vencer aquela besta fera, ainda que com ajuda de outros, ele, o deus dos mares, também o venceria. Atena sempre estava disposta a lutar, manter a sua honra e proteger os interesses do Olimpo. Na linha de trás, estava Hércules, ainda protegendo a fuga da esposa Hebe e ao mesmo tempo se preparando para uma luta corpo a corpo, que era sua especialidade, com a fera; Ares estava indeciso, não sabia se ficava ou se fugia com os demais – seus filhos já estavam quase fora do palácio de Zeus; Hermes e Hefesto também ficaram no salão em que repentinamente aparecera o oponente.
Logo vários estrondos se ouviram dentro do templo de Zeus. Todas as saídas foram bloqueadas. A única que se mantinha aberta era aquela em que Tifão se encontrava, impassível. Os deuses estavam acuados. Teriam que lutar. Todavia, algo aconteceu. Atrás de Tifão, o ceu noturno e estrelado deu lugar, em segundos, a nuvens escuras e pesadas de chuva. Dois raios explodiram a quilômetros de distância, provocando dois grandes clarões que iluminaram todo o ambiente e mostraram mais detalhes da asquerosa criatura, que já preparava o primeiro ataque. Inclinava-se sobre as poderosas pernas para dar o bote em Atena. Ela seria sua primeira vítima. No entanto, um raio explodiu sobre a criatura, que foi feita em milhares de pedaços. Cristais negros, metais fundidos e dispositivos eletrônicos voaram por todas as partes. E no lugar em que estava Tifão, apareceu Zeus, satisfeito e orgulhoso do seu teatrinho.
Aquela noite seria longa…
Zeus estava parado, na grande varanda, ladeado por duas gigantescas colunas de mármores danificadas pela explosão, enfeitadas por duas cortinas vermelhas, rasgadas, imundas e sujas de óleo e fuligem. Ostentava um sorriso confiante. Diante dele, estava a massa de deuses gregos incrédulos, apavorados, assustados, sujos, desarrumados.  Zeus, naquele momento, era o centro das atenções – como ele gostava.
Uma gargalhada profunda e sonora partiu do fundo do salão de festas destruído pelo alvoroço que a imagem de Tifão, agora feita em mil pedaços, causou. O deus Pã, sempre muito bem humorado, riu de toda a situação. Logo, outras risadas o acompanharam: Hermes, Hefestos e Ares. Hermes fora quem apertara o botão para mover o robô feito por Hefestos especialmente para aquela ocasião. Ambos sabiam do plano e ajudaram Zeus a confeccioná-lo. Ares riu, pois, na condição de Deus da Guerra, não poderia temer qualquer peleja, ainda que fosse contra o memorável e inigualável Tifão. Deveria marcar presença naquele momento para que todos o temessem ou, pelo menos, fingissem temê-lo, de forma a afastar quaisquer indícios de covardia ou insegurança diante de um rival.
Poseidon, Hades, Hércules e Atena, perplexos, abaixaram a guarda. Já estavam acostumados com as esquisitices do deus do Olimpo, por isso se recuperaram rápido do susto.
A presença de Zeus era sempre um evento glorioso e grandioso. Ele, com seu brilho, presença e personalidade forte, obscurecia os outros deuses e tal realidade incomodava um deles.
Do meio da plateia e do burburinho que tomava conta do ambiente, passando a frente de Atena, surgiu Hera, furiosa. A deusa estava com os cabelos despenteados, a roupa amarrotada, suja e muito, mas muito estressada mesmo. A festa que tanto planejara para seu marido fora destruída justamente por ele. Dessa vez ele havia se superado. Todas as comidas e bebidas foram espalhadas pelo chão outrora limpo, impecavelmente alvo.  Semanas de trabalho jogadas no lixo! As acomodações que planejara, a disposição dos deuses… tudo, absolutamente tudo tinha ido por água abaixo. As ninfas estavam assustadas, algumas estavam desmaiadas, outras choravam copiosamente e outras simplesmente sumiram. Alguns convidados também estavam horrorizados ou sem reação.
– Olha o que você fez! Estragou tudo! Levei dias organizando essa porra de festa! – As gargalhadas e burburinhos cessaram imediatamente. Quando Zeus e Hera brigavam, o Olimpo tremia e invariavelmente sobrava para alguém.
Fora do templo o tempo fechou novamente. Agora não era Zeus que fazia as nuvens negras e pesadas se moverem e os raios ribombarem, mas sim a fúria de Hera que também, embora em menor escala, controlava os raios e as tempestades.
– É sempre a mesma coisa! Eu faço tudo! Organizo as coisas nos mínimos detalhes. Fiscalizo pessoalmente os preparativos. Planejo festas memoráveis. Penso em tudo e em todos. Penso em você. Quero o seu bem, mas o meninão aí sempre dá um jeito de estragar tudo. Criança egoísta! Sempre…
– Silêncio! – trovejou Zeus.
Hera calou-se.
O silêncio no templo era total e absoluto. Zeus, descalço, majestosamente foi em direção a sua esposa. O deus pisava no chão sujo de cristais e metais retorcidos do autômato que fez às vezes de Tifão, mas isso não parecia lhe incomodar. O som de seus passos era o único que se ouvia no local. Vagarosamente, Zeus dirigiu-se a sua esposa, olho no olho, como ambos gostavam, até ficar diante dela. Levantou o braço esquerdo e estalou os dedos. A música divina de Apolo se fez ouvir. Zeus então tomou sua esposa nos braços e ambos dançaram divinamente. As demais divindades ficaram aliviadas, pois não haveria quebra pau entre os dois líderes do Olimpo, e maravilhadas com a dança de Zeus e Hera – apesar dos cabelos despenteados e da roupa amarrotada e suja da deus

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